<<VOLTAR

    A primeira descrição de quadro clínico sugestivo da endocardite infecciosa data de 1646, por Lazare Reviere.
    Após mais de 200 anos, em 1885, William Bart Osler reconheceu os nódulos que levariam seu nome e que compõem o espectro clínico da doença. Em seguida, Osler descreveu manifestações cardinais que se tornaram clássicas: cardiopatia predisponente, bacteremia, evidência de valvulite ativa e fenômeno embólico periférico(1).
    Desde então, o progresso clínico e laboratorial permitiu o aprimoramento diagnóstico da endocardite infecciosa, porém sem se afastar dos princípios oslerianos.
    Autores

    Roney Orismar Sampaio - Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

    Max Grinberg - Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP; diretor da Unidade Clínica de Valvopatia do Incor.


             
     A maioria dos casos de endocardite infecciosa em nosso país associa-se a doença valvar reumática ou cardiopatia congênita, embora se observe aumento da incidência da infecção endocárdica em portadores de prolapso valvar mitral, prótese valvar e doenças degenerativas com espessamento e calcificação valvar, além de hipertrofia septal assimétrica e estenose subaórtica hipertrófica idiopática(2). Apesar dos avanços na clínica cirúrgica, a letalidade da endocardite persiste elevada, em torno de 20% a 30%(3, 4), em parte relacionada a mudanças no espectro clínico: portadores de imunodeficiência, cateteres, próteses valvares, idosos e resistência a antibióticos.
               A oportunidade para bacteremia determina colonização pela aderência do microorganismo na lesão préformada; por exemplo, estafilococos através de exoproteínas de aderência ao fibrinogênio, respondendo por mais de 20% dos casos de infecção comunitária em valva nativa(2). Da mesma forma, os estreptococos, agentes em cerca de 40% a 50% das endocardites comunitárias, possuem, também, reconhecida capacidade de aderência aos depósitos fibrinoplaquetários e apresentam certas peculiaridades, como associação à manipulação dentária (grupo viridans). O S. bovis tem como porta de entrada no sangue sua associação com tumores colônicos(3-5). Nos hospitalizados, os estafilococos são os agentes etiológicos mais freqüentes( 3-5), especialmente na presença de próteses valvares, cateteres e imunocomprometidos. Agentes como enterococos e bacilos gram-negativos surgem de sua presença geniturinária ou intestinal, particularmente se houver imunocomprometimento. Fungos são oportunistas em pacientes hospitalizados, portadores de cateteres ou de próteses valvares. Outros agentes têm sua incidência crescente, como o grupo Hacek (Haemophilus parainfluenzae, Haemophilus aphrophilus, Actinobacillus (Haemophilus) actinomycetemcomitans, Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens e Kingella Kingae), estreptococos nutricionalmente variantes (reclassificados como Abiotrophia sp.), Bartonella, Brucella e Legionella sp.(3, 4).
               A sistematização de critérios em prol da sensibilidade e especificidade do diagnóstico foi introduzida, em 1977, por Pelletier e Petersdorf(1) e revista, em 1981, por von Reyn et al. Ressaltou-se o valor de dados clínicos: cardiopatia predisponente, febre, novo sopro regurgitante, fenômenos vasculares com dados laboratoriais fundamentais, hemocultura e estudo anatomopatológico. Em 1994, Durack et al.(1, 5), da Duke University, propuseram nova diretriz para o diagnóstico da endocardite infecciosa com a inclusão do estudo ecodopplercardiográfico como informação. Da aplicação resultam três situações de diagnóstico: definitivo, possível ou rejeitado(1, 5). O diagnóstico definitivo exige associação de dois critérios maiores, um critério maior e três menores ou cinco critérios menores, o que, aliás, é raro acontecer.
               A inclusão de febre e hemocultura positiva para microorganismos típicos (Streptococcus viridans, S. bovis, grupo HACEK, além de estafilococos ou enterococos comunitários), na ausência de outro foco e acompanhada da evidência de envolvimento endocárdico ao ecocardiograma, é o pilar do diagnóstico definitivo.
               O caráter subagudo da endocardite infecciosa sofreu mudança significante com o diagnóstico e o tratamento mais precoces. Fenômenos imunitários vêm se reduzindo nos últimos anos. Não obstante, glomerulonefrite, manchas de Roth (hemorragia retiniana com centro claro), nódulos de Osler (nódulos pequenos, dolorosos, em pele ou dedos, em eminência tenar e hipotenar) e petéquias, menos específicas, são identificados ao redor de 20% a 40% dos casos(3). Fenômenos vasculares, sobretudo embólicos, são vistos em 20% a 50% dos casos, especialmente até uma a duas semanas da introdução de terapêutica específica(3). A lesão de Janeway (mácula hemorrágica em palma das mãos e sola dos pés), outro achado clínico clássico, também é pouco vista, ocorrendo especialmente na infecção estafilocócica.
               Apesar da alta especificidade e do valor preditivo negativo acima de 92% do diagnóstico, segundo os critérios da Duke University, em algumas situações podem ocorrer discordâncias, relacionadas especialmente à hemocultura negativa, bacteremias recorrentes por estafilococos e prótese valvar recém-implantada. Em 2000 foi proposta uma pequena modificação nos critérios originais (Quadro)(4, 6) a fim de proporcionar aperfeiçoamento diagnóstico. Outros achados, como esplenomegalia e provas de atividade inflamatória positivas (proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação, mucoproteína), são importantes para o diagnóstico da infecção endocárdica, e poderão ser incluídos em novas avaliações. Estudos multicêntricos em endocardite infecciosa, ao contrário do observado em doença coronariana, são infreqüentes. A relativa infreqüência da endocardite infecciosa tem estimulado ações de integração entre serviços em vários países, com o objetivo de elaborar banco de dados internacionais.
               A investigação de paciente sob suspeita de endocardite infecciosa inclui a obtenção de três coletas de hemocultura e a realização de ecocardiograma. Em algumas situações faz-se necessário o estudo transesofágico, pela melhora na sensibilidade e na especificidade, sobretudo em pacientes com janela acústica inadequada ou no estudo de próteses valvares, além da avaliação

    de invasão de tecido perivalvar, como abscesso de anel e formação de fístula, ou se houver persistência de suspeita clínica, apesar de resultados iniciais negativos pelo ecocardiograma transtorácico. O ecocardiograma deverá ser repetido de acordo com a progressão clínica ao final do tratamento. Caso haja piora clínica, desenvolvimento de insuficiência cardíaca, suspeita de disfunção ventricular esquerda ou de extensão perivalvar, o ecocardiograma deverá ser repetido mais precocemente.
               Dificuldade ocorre se as hemoculturas estiverem negativas em ausência de diagnóstico alternativo, como é observado em cerca de 5% a 15% dos casos(3, 4). A administração de antibióticos antes da colheita de hemoculturas reduz em 35% a 40% a possibilidade de recuperação do agente infeccioso(3, 4). Agentes de crescimento lento (grupo Hacek, Bartonella, Abiotrophia), de difícil recuperação, como algumas espécies de fungos, Coxiella e Brucella, por vezes são erroneamente rotulados como de hemocultura negativa. Meios de cultura especiais, colheita para sorologias específicas ou identificação do DNA do agente por técnicas de reação de cadeia de polimerase podem ser úteis para o esclarecimento etiológico. Além disso, a evolução clínica auxiliará no diagnóstico diferencial no qual incluímos a febre reumática (especialmente em crianças e adolescentes), sepse de origem desconhecida, broncopneumonia, infecção intestinal ou urinária e miocardite.

    Terapêutica clínica

              O início da terapêutica em pacientes sob suspeita de endocardite deverá preferencialmente ser baseado na identificação do germe e no antibiograma. Em pacientes graves ou toxêmicos, o início urgente da antibioticoterapia deverá ser precedido por colheita de três pares de hemoculturas com intervalos curtos de 5 a 10 minutos.
               As drogas de escolha para a necessidade de antibioticoterapia em valva nativa antes do conhecimento do antibiograma são penicilina G cristalina, gentamicina e oxacilina (75% dos casos devem-se a estreptococos ou estafilococos). A subseqüente identificação do microorganismo poderá redirecionar a antibioticoterapia( 7, 8). Nos portadores de endocardite por estreptococos não-complicada, sobretudo em algumas cepas altamente sensíveis à penicilina (concentração inibitória mínima menor ou igual a 0,1mg/ml), tem sido utilizado o tratamento por duas semanas, com índice de cura elevado, embora a pequena experiência não autorize a administração deste esquema, exceto em grupos isolados(7). A ceftriaxona por quatro semanas é uma opção à penicilina, ainda que pouco utilizada nesta situação; em pacientes alérgicos à penicilina prefere-se a vancomicina.
               Os estafilococos constituem o segundo grupo mais freqüente de endocardite comunitária e o predominante em usuários de drogas injetáveis e na endocardite de origem nosocomial. A droga de escolha é a oxacilina por seis semanas associada a aminoglicosídeo por 14 dias. Como opção podem-se utilizar as cefalosporinas ou a vancomicina, quando houver infecção por germes meticilino-resistentes(7, 8). A endocardite por S. aureus associa-se a pior prognóstico devido a maior virulência, freqüência aumentada de embolia e formação de abscessos. Em usuários de drogas injetáveis, a valva tricúspide é atingida em sua maior parte, o risco de embolia é menor, exceto para pulmão, e a resposta terapêutica é mais eficaz. O estafilococo coagulasenegativo é o agente etiológico da endocardite precoce em prótese em cerca de 50% dos casos, sobretudo devido à contaminação intra-operatória. O diagnóstico é sugerido por febre persistente e bacteremia no pósoperatório. O prognóstico depende da precocidade do diagnóstico e da terapêutica, que corresponde habitualmente à associação de vancomicina e aminoglicosídeo até o isolamento do germe, além de, invariavelmente, substituição da prótese. Em alguns casos a associação de rifampicina pode ser benéfica(7, 8).
               Enterococos, bacilos gram-negativos, fungos, grupo Hacek e outros mais raros, ou seja, Brucella, Bartonella, Coxiella e micobactérias, podem ser agentes de infecção endocárdica, recebendo tratamento específico de acordo com o antibiograma(4, 7, 8). Em relação às micobactérias, vale mencionar a associação com prótese porcina, sobretudo por esterilização inadequada durante a confecção da prótese, devendo ser sempre lembrada na eventualidade de endocardite precoce e hemoculturas iniciais negativas(9).

    Complicações

              As complicações cardíacas mais graves são relacionadas a danos mecânicos às estruturas valvares. A presença de insuficiência cardíaca refratária, quase sempre por rotura ou deiscência parcial de prótese, ou ainda por disfunção ventricular, sobretudo em posição aórtica, eleva a mortalidade em até 50%(3, 10).
               A substituição da valva afetada, ainda que envolva riscos de recidiva, melhora o prognóstico e deve ser efetuada tão rápido quanto possível(3, 5, 8, 10). É desejável que a terapêutica antibiótica seja iniciada antes da cirurgia, idealmente 48 horas antes desta, a fim de assegurar níveis séricos adequados de antibiótico e menor contaminação periprotética. Infelizmente isto nem sempre é possível, em face da gravidade do paciente.
               A extensão da infecção além do anel valvar, causando abscesso perianular, é também mais comum em portadores de prótese aórtica, sendo reconhecida pela presença de bloqueios atrioventriculares de graus variados ao eletrocardiograma ou novo sopro, sugestivo de comunicação intracardíaca. O ecocardiograma transesofágico proporciona melhor reconhecimento da extensão perianular, permitindo intervenção cirúrgica mais precoce e evitando, assim, destruição do esqueleto fibroso cardíaco. Nos casos de acometimento do anel valvar em portadores de próteses pode ocorrer desinserção parcial, que é revelada pelo ecocardiograma e requer tratamento cirúrgico urgente.
               Episódios embólicos são freqüentes manifestações extracardíacas. Ocorrem em 20% a 50% dos casos de endocardite(3, 10), sendo a maioria assintomática. O risco eleva-se na presença de grandes vegetações (acima de 10mm), ou aumento destas na vigência de antibioticoterapia adequada, sobretudo em portadores de endocardite por fungos, estafilococos e grupo Hacek. Há ocorrência preferencial em até duas semanas do início da antibioticoterapia e atinge em cerca de 65% das vezes o sistema nervoso central em torno de 90% para a artéria cerebral média(3), embora possa atingir artéria coronária, baço, pulmões, intestino e extremidades.
               A embolia para o sistema nervoso central, especialmente grave, dificulta não só o tratamento clínico como retarda a troca valvar, devido à necessidade de heparinização do paciente durante a circulação extracorpórea, com piora significativa do prognóstico. Algumas vezes, a embolia pode atingir os vasa vasorum, com infecção local, reação inflamatória e enfraquecimento da parede do vaso - fenômeno conhecido como aneurisma micótico. A instituição da terapêutica é benéfica para regressão do aneurisma, embora a rotura possa ocorrer meses após o término do tratamento. Arteriografia cerebral ou angiorressonância magnética seriada são úteis para identificar casos com iminência de rotura, embora a opção pela correção cirúrgica seja difícil e decidida em conjunto com equipe neurocirúrgica.
               Noutras situações pode haver colonização de bactérias e formação de abscessos; como no baço, podendo ser difícil a diferenciação entre abscesso e infarto esplênico. Persistência de febre, toxemia e bacteremia recorrente obriga a procura de novos focos de infecção, incluindo o abscesso esplênico, cuja avaliação complementar é realizada inicialmente com ultra-sonografia e tomografia computadorizada, ou ressonância magnética em caso de dúvida diagnóstica. Confirmada a presença do abscesso, procede-se à esplenectomia ou à drenagem percutânea antes da cirurgia cardíaca, devido ao risco de infecção intra-operatória.

    Terapêutica cirúrgica

              O tratamento cirúrgico na endocardite é indicado se houver falência da conduta clínica ou aparecimento de complicações. Algumas situações apresentam maior freqüência de tratamento cirúrgico: idosos, germes mais virulentos, presença de insuficiência cardíaca refratária, má resposta à antibioticoterapia e lesão em posição aórtica(3, 4, 10). A princípio, a indicação do tratamento cirúrgico na vigência da infecção não é a primeira opção terapêutica, visto que aumenta a possibilidade de contaminação intra-operatória do material implantado; todavia comprometimento hemodinâmico, febre persistente (acima de dez dias, apesar de antibioticoterapia adequada), evidências de toxemia, disfunção renal ou extensão da infecção para região perianular, além de infecção por fungos, bactérias gram-negativas e, eventualmente, estafilococos, implicam quase sempre má resposta ao tratamento clínico e necessidade de cirurgia.

    Referências Bibliográficas

    1. GRINBERG, M.; DÉCOURT, L. V. Princípios de Osler, critérios de Jones e métodos propedêuticos modernos no diagnóstico da endocardite infecciosa. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo, v.5, p. 389-97, 1995.
    2. BONOW, R. O. et al. Guidelines for the management of patients with valvular heart disease: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Committee on management of patients with valvular heart disease). Circulation, v. 98, n. 18, p. 1949-84, 1998.
    3. BAYER, A. S. et al. Diagnosis and management of infective endocarditis and its complications. Circulation, v. 98, p. 2936- 48, 1998.
    4. MYLONAKIS, E.; CALDERWOOD, S. B. Infective endocarditis in adults. N Engl J Med, v. 345, p. 1318-30, 2001.
    5. DURACK, D. T.; LUKES, A. S.; BRIGHT, D. K. The Duke Endocarditis Service. New criteria for the diagnosis of infective endocarditis: utilization of specific echocardiographic findings. Am J Med, v. 96, p. 200-9, 1994.
    6. LI, J. S. et al. Proposed modifications to the Duke criteria for the diagnosis of infective endocarditis. Clin Infect Dis, v. 30, p. 633-8, 2000.
    7. WILSON, W. R. et al. Antibiotic treatment of adults with infective endocarditis due to Streptococci, Enterococci, Staphylococci, and Hacek microoorganisms: American Heart Association. JAMA, v. 274, p. 1706-13, 1995.
    8. SAMPAIO, R. O.; GRINBERG, M. Princípios de tratamento e prognóstico. Manual de Cardiologia - Socesp. In: TIMERMAN, A. et al. (eds.) São Paulo: Editora Atheneu, 2000. p. 260-4.
    9. SAMPAIO, R. O. et al. Prótese porcina e BAAR (bacilo álcoolácido- resistentes). Uma etiologia a ser lembrada. Rev Soc Cardiol ESP, v. 12, n. 2, supl B, p. 67, 2002.
    10. MANSUR, A. J. et al. The complications of infective endocarditis. A reappraisal in the 1980s. Arch Intern Med, v. 152, p. 2428-32, 1992.