A compreensão da base genética na doença arterial coronariana pode melhorar o seu manejo e prevenção. Os
conhecimentos atuais sobre o assunto derivam de estudos familiares, em gêmeos, em modelos animais e em estudos de
associação de genes, e todos eles confirmam uma participação genética na doença arterial coronariana. Os genes contribuem
para o seu desenvolvimento e progressão e para a resposta aos fatores de risco, à sua modificação, e para o efeito do estilo de
vida. Os estudos familiares são os melhores indicadores da predisposição à doença arterial coronariana, e refinamentos
maiores são possíveis com os testes bioquímicos e de DNA. Muitos fatores de risco de doença cardiovascular herdada podem
ser modificados, tais como o LDL-colesterol, a homocisteína e a lipoproteína A. A detecção precoce da doença arterial
coronariana pode levar a intervenções mais precoces em indivíduos geneticamente suscetíveis. Contudo existem poucos
dados relativos à eficácia deste método de prevenção para eventos clínicos importantes. O conhecimento da predisposição
genética da doença arterial coronariana tem valor no manuseio da informação de riscos e para dirigir decisões terapêuticas,
embora exista uma falta de evidência para este fenômeno. Isto faz com que novas pesquisas sejam necessárias para investigar
os resultados da avaliação do risco genético na doença arterial coronariana.
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Autores
Edson A. Saad - Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF); Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.
José Geraldo de Castro Amino - Coordenador de Pesquisa no Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras/Ministério da Saúde.
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Trataremos subseqüentemente: 1) da evidência de
que fatores genéticos podem contribuir para o desenvolvimento
e a história natural da doença arterial
coronariana; e 2) do papel da avaliação de risco genético
na prevenção da doença arterial coronariana.
O papel da genética
Vários processos bioquímicos estão envolvidos na
formação, na progressão da aterosclerose e nas síndromes
coronarianas agudas, incluindo o metabolismo
lipídico e das apolipoproteínas, resposta inflamatória,
função endotelial, função plaquetária, trombose,
fribrinólise, metabolismo na homocisteína, sensibilidade
a insulina e regulação da pressão arterial. Cada
um destes processos bioquímicos tem constituintes
múltiplos como enzimas receptoras e ligandos, que são
codificados pelos genes. Variações nos genes podem
alterar a função destes constituintes, dentro de vias
que resultam em suscetibilidade variável ao desenvolvimento
e à progressão da aterosclerose. Geralmente a
doença arterial coronariana pode ser considerada uma
interação entre vários genes favoráveis e desfavoráveis
e fatores ambientais. Os pacientes com maior número
de fatores de risco, incluindo genéticos e ambientais,
têm o maior risco de desenvolver aterosclerose em estágios
precoces. Os fatores de risco ambientais e estilos
de vida que predispõem a aterosclerose são os
prevalentes nas sociedades ocidentais, incluindo o
fumo, a inatividade e o excesso de calorias com alto
teor de ingesta de lipídios. Como para a maioria das
doenças comuns da idade adulta, a maior parte dos
fatores genéticos que contribuem para a doença arterial
coronariana é prevalente na população e de penetração
baixa. Raramente a sensibilidade à aterosclerose
é resultado de uma mutação genética única, como, por
exemplo, acontece na hipercolesterolemia familiar devida
a mutações do receptor LDL ou a mutações da
apolipoproteína P, que estão presentes em 1:500 e em
1:1.000, respectivamente. Várias linhas de investigação
fornecem evidências para uma base genética da doença
arterial coronariana e os seus fatores de risco. Os métodos
de investigação incluem o estudo de agregação familiar,
de gêmeos, de modelos animais e das associações
de genes.
Agregação familiar
Estudos de caso-controle mostram uma média de
aumento de duas a três vezes do risco de doença arterial
coronariana nos parentes de primeiro grau. História
familiar de doença arterial coronariana antes dos
60 anos em um parente de primeiro grau é um fator
de risco independente para o desenvolvimento de
infarto do miocárdio precoce depois de correção para
os fatores de risco tradicionais. Estudos prospectivos
mostram que existe um aumento de uma e meia a duas
vezes no risco de doença arterial coronariana associada a história familiar depois do ajuste para os fatores
de risco tradicionais. Os fatores de risco associados com
a doença arterial coronariana também têm agregação
em famílias doentes, e neste caso estão as anormalidades
lipídicas, a hipertensão, o diabetes e a obesidade,
sugerindo uma base genética para estas condições e
explicando em parte a agregação familiar de
coronariopatia.
Estudos angiográficos demonstram que uma história
familiar de coronariopatia é um fator de risco
preditivo independente para a coronariopatia
angiograficamente evidente. Também existe uma correlação
entre a extensão da coronariopatia e a história
familiar de infarto do miocárdio.
História familiar de coronariopatia também está
associada a evidências pré-clínicas de aterosclerose,
como medidas, pelo índice de espessamento, da íntima
para média nas artérias carótidas. Estudo recente
mostra que evidências de coronariopatia estão presentes
e são detectáveis por métodos não-invasivos, como
a medida do espessamento na íntima e na média
carotídea em indivíduos jovens com parentes com história
prematura de coronariopatia. Um estudo epidemiológico
genético analisou dados relativos a 19 fatores
de risco tradicionais em 207 pacientes com infarto
do miocárdio antes dos 55 anos e 621 controles. Em
uma análise univariada, a razão de chance mais elevada
estava associada à história familiar nos parentes de
primeiro grau que desenvolveram doença coronariana
antes dos 55 anos, e o risco estava aumentado 7,1 vezes
nos parentes que foram diagnosticados antes dos
65 anos. Estes riscos são substancialmente maiores do
que os associados com a elevação do colesterol acima
de 270mg% (razão de chance = 4,3), fumo de pelo
menos um maço de cigarros por dia (razão de chance
4), inatividade (razão de chance = 3,4). Este estudo
mostra ainda que a hereditariedade para o início ou a
ocorrência precoce da doença arterial coronariana é
0,63 e, após a exclusão de anormalidades aparentemente
monogênicas do metabolismo lipídico, a estimativa
é de 0,56, sugerindo que mais da metade da
doença arterial coronariana diagnosticada antes da idade
de 55 anos seja devida à contribuição de genes. Finalmente,
vários estudos que investigaram a agregação
familiar na coronariopatia aterosclerótica
demonstraram que, quanto mais cedo é o início desta
doença, maior é o risco dos parentes em primeiro grau.
Em adição, o risco da doença é tipicamente muitas
vezes maior em parentes de mulheres-caso em comparação
com os homens.
Estas características demonstram o tipo poligênico/
multifatorial da herança da doença arterial coronariana,
com a ocorrência de doença clínica representando um
limiar de vários fatores que se abatem sobre as mulheres
e adultos jovens menos suscetíveis, mas que apresentam
uma carga acentuada de genes predisponentes,
transmitindo, assim, uma grande carga genética à sua
descendência. Em famílias com doença arterial
coronariana com início antes dos 46 anos, a hereditariedade
é estimada em 90% a 100%, enquanto que
em famílias dos casos que adquiriram doença
coronariana mais tardiamente, o papel da hereditariedade
varia entre 15% e 30%.
Estudos em gêmeos
Gêmeos têm sido úteis no estudo da contribuição
genética a várias doenças comuns. Uma elevada concordância
de um traço em gêmeos monozigóticos que
compartilham todos os seus genes, em comparação
com os gêmeos dizigóticos, que têm apenas a metade
dos genes idênticos, sugere um componente genético.
Os dados da contribuição genética à doença arterial
coronariana em gêmeos provêm, principalmente, de
um estudo dinamarquês iniciado em 1954 e que inclui
cerca de 8 mil pares de gêmeos não-selecionados.
Uma diferença significativa em concordância para mortes
por doença coronariana foi observada em gêmeos
monozigóticos em comparação com os dizigóticos, em
homens e mulheres: 39% vs. 26% e 44% vs. 14%,
respectivamente. Os estudos mostram também um
índice de concordância similar para infarto do miocárdio
fatal e não-fatal.
Modelos animais
Excelentes modelos animais de mesma linhagem
existem para aterosclerose e condições associadas: hipertensão,
diabetes melito, dislipidemias e obesidade.
Associações de genes em modelos animais podem mesmo
resultar na identificação de genes candidatos para
estudos em famílias de humanos.
Estudos de associações de genes
Vários polimorfismos genéticos estão associados com
aterosclerose (Quadro 1). Genericamente eles são genes
candidatos de vias bioquímicas implicadas no desenvolvimento
e na progressão da aterosclerose. Inúmeros estudos
mostraram associações de genes com doenças relacionadas
e indiretamente implicadas no desenvolvimento
e na progressão da coronariopatia, tais como hipertensão,
obesidade e diabetes.
Investigações recentes utilizando avaliação
genômica encontraram locais genéticos adicionais associados
com doença arterial coronariana, hipertensão
e diabetes. Análises de ligação em famílias com
aterosclerose prematura mostraram evidências para ligações
com uma região do cromossoma 2q21.1-22 e
Xq23-26.
Alguns fatores genéticos aumentam a progressão e
a incidência de eventos clínicos coronarianos por influenciar
as respostas às modificações dos fatores de
risco e estilo de vida, tais como dieta, álcool e uso de
terapêutica de substituição hormonal pós-menopausa.
Para citar um só exemplo, um estudo recente mostrou
que 40% da variação individual do colesterol LDL
em resposta à dieta com redução de gorduras saturadas
representam um traço familiar.
Mensuração da suscetibilidade
genética à doença arterial
coronariana
Suscetibilidade genética para doença arterial
coronariana pode ser avaliada por vários métodos que
incluem testes com base em DNA, avaliação fenotípica
de traços bioquímicos, características físicas, bem como
história pessoal e familiar. O exame físico pode mostrar
dados importantes, tais como xantomas tendinosos e
xantelasmas encontrados nas doenças hereditárias dos
lipídios, o estigma de síndrome de Marfan, síndrome
de Ehlers-Danlos e pseudoxantoma elástico. Contudo
estas síndromes hereditárias são raras e respondem apenas
por uma pequena porcentagem de doença cardiovascular.
Por outro lado os marcadores de DNA associados
com o risco de doença arterial coronariana são
geralmente prevalentes e de baixa magnitude, de tal
forma que isoladamente eles não são altamente preditores
de risco de doença coronariana. Portanto a história familiar
sistemática parece no momento ser a mais apropriada
avaliação para identificação de indivíduos com suscetibilidade
genética a doença coronariana. O Quadro 2
mostra as características na história familiar de suscetibilidade
genética a doença arterial coronariana. Agregação
familiar de doença arterial coronariana, acidente vascular
cerebral, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes do
tipo 2 sugerem resistência à insulina referida com freqüência
como síndrome X. De um modo geral, os relatórios
da história familiar de doença coronariana são
geralmente acurados, com uma sensibilidade de 67% a
85%. Ocorrência na história familiar de diabetes e hipertensão
tem uma sensibilidade semelhante. Os valores
de especificidade para a ocorrência na história clínica
familiar destas condições se aproximam de 90%.
Assim, uma história familiar positiva pode geralmente
ser usada com alto grau de confiança para identificação
de indivíduos que podem estar em risco aumentado de
desenvolver doença arterial coronariana. História familiar
de doença cardiovascular, incluindo doença arterial
coronariana, acidente vascular e síndrome X, é a característica
mais comum e relatada em 34% dos casos de
coronariopatia.
Aplicação clínica da
informação de suscetibilidade
genética na prevenção da
coronariopatia
A redução do colesterol é uma importante estratégia
clínica para a prevenção primária e secundária da
doença arterial coronariana. Contudo, a despeito de
uma redução lipídica efetiva, uma proporção substancial
de indivíduos desenvolve aterosclerose coronariana
ou tem progressão da sua doença. Em adição, vários
investigadores manifestam a sua preocupação em relação
a segurança e custo/efetividade desta forma de prevenção.
Além disto, um colesterol elevado não é um
preditor sensível de indivíduos com a maior possibilidade
genética para doença arterial coronariana. Em
um estudo de adultos com doença arterial coronariana
prematura, apenas 38% tinham valores lipídicos anormais.
A anormalidade mais comum foi a elevação da
LP(a), que ocorreu em 19% dos casos e que não é detectada
com o exame rotineiro do colesterol, e apenas
3% tinham LDL-colesterol elevado.
A doença arterial coronariana é uma desordem
heterogênea. Portanto não é razoável esperar que uma
via simples de prevenção possa existir para todos os
pacientes. O conhecimento da suscetibilidade genética
à doença coronariana pode identificar diferenças
biológicas importantes que poderiam vir a melhorar o
manuseio e a prevenção da doença coronariana através
de terapêuticas dirigidas. A incapacidade de reconhecer
estas diferenças pode resultar em falta de acesso
apropriado aos cuidados médicos daqueles pacientes
que se beneficiariam de estratégias de manuseio e
prevenção alternativas.
A melhoria em vários fatores de risco cardiovasculares
hereditários é possível. Por exemplo, a
suplementação com co-fatores envolvidos no metabolismo
da homocisteína, como as vitaminas B6 e B12 e
os folatos, é eficaz para reduzir os níveis de
homocisteína, particularmente se existe uma deficiência
vitamínica. Do mesmo modo, o uso de estrogênios
e testosterona em homens e mulheres e de ácido
nicotínico reduz a lipoproteína A. Contudo faltam
dados relativos à eficácia da prevenção de eventos clínicos
cardiovasculares em indivíduos que tiveram
modificados fatores genéticos mais recentemente descritos,
como a homocisteína e a lipoproteína A. A despeito
destes fatos, indivíduos com maior suscetibilidade
genética para doença arterial coronariana
detectada na história familiar e na presença de novos
fatores de risco podem ter um grande benefício com
as estratégias preventivas tradicionais, como a variação
e o tratamento dos níveis elevados de colesterol.
Estratégias para detecção
Precoce
Estratégias para detecção precoce de doença arterial
coronariana não são geralmente recomendadas para a população
em geral, uma vez que muitos métodos não têm
sensibilidade e especificidade adequadas, enquanto que
outros são muito invasivos ou dispendiosos. A despeito
disto, o uso e a detecção precoce da doença coronariana
com a tomografia por feixe de elétrons podem ser custoefetivos
para indivíduos de alto risco segundo sua suscetibilidade
genética. Existe uma evidência considerável de que as
calcificações coronarianas se correlacionam altamente com
a presença e o grau de doença coronariana obstrutiva, ou
não-obstrutiva, e infarto não-fatal, tornando necessária a revascularização
coronariana em indivíduos assintomáticos
ou sintomáticos. Também os estudos com tomografia por
feixe de elétrons, como o Spect, são capazes de identificar
isquemia silenciosa significativa. Nenhum dos pacientes
com score coronariano menor que 10 teve uma imagem de
Spect positiva. Cintilografias anormais são encontradas em
2,6% com score de 11 a 100; 11,3%, com score de 101 a
399; e 40% com score de 400 ou mais.
Quando a doença coronariana é identificada em
indivíduos com alto risco de suscetibilidade genética,
uma conduta mais agressiva para modificação dos fatores
de risco e uma consideração de intervenção com
medidas profiláticas, como a angioplastia coronariana
ou a cirurgia de revascularização miocárdica, pode estar
indicada.
Aconselhamento e educação
genética em relação à
suscetibilidade à doença arterial
coronariana
Um objetivo importante da avaliação genética na
doença arterial coronariana é o desenvolvimento de
estratégias preventivas individualizadas baseadas na avaliação do risco genético, bem como na história médica
do paciente, no estilo de vida e nas preferências.
A participação dos pacientes no processo é vital
para o sucesso do plano preventivo. O aconselhamento
genético é um componente integral da avaliação
genética e é crítico para delinear motivação de pacientes
e a sua compreensão da avaliação do risco genético.
Via de regra os indivíduos estão motivados a participar
da avaliação do risco genético com esperança de
que ela irá mostrar o plano mais apropriado para o
manuseio e a prevenção da doença e também pelos
benefícios que a informação genética pode trazer para
os seus familiares. Vários estudos mostraram que uma
história familiar pode influenciar na adesão à avaliação
dos lipídios e outras intervenções preventivas. Existem
barreiras à obtenção de informação do risco genético
que incluem o medo de discriminação quer no
local de trabalho, quer com seguradoras, custo e incerteza
a propósito do valor da intervenção. A evidência
de discriminação genética em indivíduos normais
é mínima. Desde 1990 tem havido um interesse crescente
relativo ao uso de informação genética por seguradoras
de saúde. Em 1996 o Health Insurance
Portability and Accountability Act (HIPAA) se tornou,
nos Estados Unidos, a primeira lei federal para
limitar o uso de dados genéticos por seguradoras de
saúde. Ele proíbe a planos de medicina de grupo, por
exemplo, usar a predisposição genética à doença como
uma condição preexistente que poderia retardar ou limitar
a cobertura de saúde.
Triglicerídeo: fator de risco
ou companheiro de viagem?
Um assunto não resolvido na cardiologia preventiva
é se os triglicerídeos séricos são um fator de risco
independente de doença arterial coronariana e, conseqüentemente,
se possuem valor como teste diagnóstico.
Evidências publicadas a partir do ano 2000 contribuíram
substancialmente para clarificar este assunto.
Metabolismo dos triglicerídeos
Os triglicerídeos são formados no processo de
transferência de gordura do intestino para o sangue.
Neste processo eles são veiculados principalmente pelas
proteínas de muito baixa intensidade (VLDL). Os
triglicerídeos são metabolizados pela lipase lipoprotéica
para um remanescente que é removido durante a passagem
através do fígado, onde ele também é armazenado.
Alguns destes remanescentes são metabolizados
pela lipase hepática em lipoproteínas de baixa densidade
(LDL), que também são armazenadas no fígado.
Pacientes com doença arterial coronariana e diabetes
exibem diferenças substanciais no seu metabolismo
dos triglicerídeos em relação aos indivíduos normais.
Em pacientes com doença arterial coronariana,
os níveis pós-prandiais de triglicerídeos são aproximadamente
o dobro daqueles que ocorrem nos normais
4 a 5 horas após a ingestão de uma refeição gordurosa.
Imagens ultra-sônicas carotídeas mostram que a
ecotransparência das placas ateroscleróticas está associada
com o aumento dos níveis de lipoproteínas ricas
em triglicerídeos, bem como com o seu conteúdo
lipídico. A hipertrigliceridemia pós-prandial se
correlaciona com a espessura da íntima e média das
carótidas. Quilomícrons ou os seus remanescentes penetram
na parede aórtica tão eficientemente quanto
as moléculas menores, incluindo o LDL e o HDL. A
velocidade de acumulação na parede de um vaso e a
duração da retenção de quilomícrons/remanescentes
radioativos são maiores do que as do LDL, e são positivamente
relacionadas ao grau de hiperglicemia. Conseqüentemente
um mecanismo pelo qual os
triglicerídeos podem contribuir para um aumento do
risco de aterosclerose é diretamente através do acúmulo
na parede do vaso, iniciando-se um processo bem estabelecido
que acompanha a acumulação das
lipoproteínas de baixa densidade.
Níveis séricos de triglicerídeos e risco de
doença arterial coronariana
Os níveis de triglicerídeos séricos têm sido positivamente
associados com o risco de desenvolver doença
arterial coronariana. Por exemplo, na base de dados de
Framingham, Castelli et al. encontraram um incremento
de duas vezes no risco de doença coronariana em
pacientes com níveis de triglicerídeos séricos na faixa
de 250mg% a 400mg% em comparação com aqueles
na faixa de 50mg% a 100mg%. Uma das maiores bases
de dados epidemiológicos da hipertrigliceridemia, o
Munster Heart Study (Procam), envolve cerca de 13.737
homens e 5.961 mulheres observados por oito anos.
Neste estudo, níveis moderadamente elevados de
triglicerídeos constituem um fator de risco para doença
coronariana, independentemente de LDL e HDL. Metanálise
do risco de doença arterial coronariana em relação
aos níveis de triglicerídeos séricos sugere que um
nível elevado de triglicerídeos confere um risco aumentado
para desenvolver doença coronariana mesmo após
o ajuste para HDL colesterol. A dificuldade em atribuir
um risco independente para os triglicerídeos em relação à doença arterial coronariana é, contudo, a sua típica
e íntima associação com outros fatores de risco.
Triglicerídeos elevados constituem um importante
componente da chamada síndrome metabólica, que
inclui obesidade, hipertensão, hipertrigliceridemia,
diminuição das lipoproteínas de alta densidade (HDL),
predomínio das lipoproteínas pequenas, densas, de
baixa densidade (LDL), diminuição da tolerância a
glicose e insulinorresistência. Em um estudo elegante,
Sprecher et al. analisaram o significado prognóstico
em quatro dos componentes das síndromes metabólicas,
a saber: obesidade, diabetes, hipertensão e
hipertrigliceridemia em 6.428 pacientes pós-cirurgia
de by-pass aortocoronariano, durante oito anos, na
Cleveland Clinic. A mortalidade analisada variou de
1% naqueles sem nenhum fator de risco a 3,3% naqueles
com todos os quatro fatores de risco. Separando
homens e mulheres, o risco para os que têm quatro
fatores de risco foi de 2,6% nos homens e 13,4% nas
mulheres. Importantemente, a sobrevida dos pacientes
sem os componentes da síndrome excedeu a 95%
em oito anos, enquanto que aqueles com a síndrome
tiveram uma sobrevivência de apenas 80%.
Como a insulinorresistência é associada com aumento
substancial na prevalência de lipoproteínas de
baixa densidade, lipoproteínas de alta densidade e
triglicerídeos séricos reduzidos, não é possível separar
estes componentes individuais do padrão lipídico ou
atribuir um aumento de risco de doença coronariana
a um fator lipídico individualmente. Com base nestes
estudos é possível concluir, contudo, que os níveis elevados
de triglicerídeos estão associados com um aumento
substancial no risco de doença coronariana, e
que os triglicerídeos séricos se agrupam com outros
fatores que predispõem ao risco aumentado e que esta
agregação impede a análise de associação independente
de um destes fatores com a incidência de doença
coronariana. Conseqüentemente, as medidas de
triglicerídeos séricos têm valor como instrumento
diagnóstico.
O impacto dos ensaios clínicos
Durante vários anos o melhor estudo sobre a terapêutica
para reduzir os triglicerídeos séricos foi o Helsinki
Heart Study, conduzido em 4.081 pacientes entre 40 e
55 anos assintomáticos e dislipidêmicos. Nestes pacientes,
o genfibrosil na dose de 600mg duas vezes ao dia foi
comparado com placebo em um período de cinco anos.
O colesterol total e o LDL reduziram-se em 10% e 11%,
respectivamente, e o HDL aumentou em 11%. Os
triglicerídeos séricos baixaram 35%. Estas alterações nos
parâmetros lipídicos foram acompanhadas por uma redução
de 34% na incidência de doença arterial
coronariana. Estes dados sugerem que a redução dos
triglicerídeos séricos tem benefício terapêutico, mas, devido
ao fato de que o HDL colesterol foi também alterado
numa direção benéfica e que não existem estudos
confirmatórios, o assunto permaneceu não-resolvido.
Além disso, é preciso lembrar que a aplicabilidade destes
estudos se faz em indivíduos de sexo masculino entre 40
e 55 anos de idade apenas. A suspeição de que os
triglicerídeos possam ser um elemento ao lado e nãocausal
foi confirmada por uma análise de subgrupos dos
dados de Helsinki, que apontaram o colesterol HDL basal
como um fator crítico. O benefício da redução dos níveis
séricos de triglicerídeos foi confinado ao grupo com
relação LDL/HDL > 5, não tendo havido diferença entre
o placebo e o grupo de tratamento quando esta relação
LDL/HDL foi 5. Assim, embora a redução dos
triglicerídeos reduza a incidência de doença arterial
coronariana, o mecanismo responsável por este efeito
benéfico ainda não foi elucidado. Muitos anos se passaram
até que um outro importante ensaio de redução de
lipídios tivesse sido relatado. O ensaio Becait comparou
o destino angiográfico de 81 pacientes tratados com
bezafibrato ou placebo e observados por um período de
cinco anos. Neste grupo os triglicerídeos séricos foram
reduzidos em 46%, e o VLDL, em 53%, enquanto que
o HDL aumentou 9% com uma mudança na distribuição
dos LDL para partículas mais largas no grupo tratado
com bezafibrato. Alterações no colesterol total e no
LDL foram relativamente insignificantes. Após cinco
anos, o grupo tratado demonstrou um aumento de
0,13mm no diâmetro luminal coronariano mínimo, enquanto
que no grupo placebo não houve tal benefício.
Estes dados parecem demonstrar a possibilidade de um
efeito benéfico da redução dos triglicerídeos séricos e/ou
da elevação de HDL.
Os dados do Becait foram validados pelo ensaio
Vahit publicado em 1999. Neste ensaio, 2.531 pacientes
com doença coronariana e com HDL baixo (menor
que 40mg%), mas níveis relativamente normais de LDL
(140mg%), foram tratados com genfibrosil na dose de
1.200mg por dia por cinco anos. As lipoproteínas de
baixa densidade não foram modificadas durante o tratamento,
enquanto que os triglicerídeos caíram 31%
e o HDL aumentou 6%. Estas alterações no perfil
lipídico estiveram associadas com uma redução de 20%
a 25% no infarto do miocárdio, na morte e em acidente
vascular cerebral. Com base nestes dados, por-
tanto, é possível propor que existe um padrão consistente:
pacientes com níveis baixos de HDL, com ou
sem doença arterial coronariana conhecida, têm uma
redução substancial no número de eventos cardíacos,
com o benefício da redução dos triglicerídeos séricos
induzido pelo fibratos, os quais eram acompanhados
por um modesto aumento de HDL e por nenhuma
alteração significativa de LDL.
Pouco depois da publicação do ensaio Vahit, o
Bezafibrato Infarction Prevention Trial (BIP) foi publicado.
Este ensaio envolveu 3.090 pacientes portadores
de doença arterial coronariana observados por 6,2 anos.
Os dados de lipídios, duração do follow-up e magnitude
da alteração dos fatores lipídicos individuais foram grosseiramente
comparáveis com aqueles do ensaio Vahit.
Neste estudo não houve um decréscimo significativo
na mortalidade cardíaca, e apenas 9,4% de diminuição
de eventos cardíacos não-fatais (p = 0,26).
Essa diferença se deve à convergência da curva de
eventos, refletindo um achatamento não-explicado da
curva de placebo no final do estudo. As diferenças entre
o Vahit e o BIP continuam não-explicadas.
Neste contexto, o ensaio mais recente, o Diabetes
Atherosclerosis Intervention Study (Dais), parece confirmar
os resultados do Vahit, do Becait e de outros ensaios.
No Dais, 418 pacientes diabéticos do tipo 2 com
doença coronariana angiograficamente comprovada foram
tratados com fenofibrate 200mg ou placebo
micronizado diariamente, por três anos, sendo, então,
o estudo angiográfico repetido. As lipoproteínas de baixa
densidade diminuíram apenas 5%, mas os
triglicerídeos diminuíram 30% e o HDL aumentou 8%.
Pacientes no grupo fenofibrate tiveram aumentos significativamente
menores no diâmetro de estenose e
menores diminuições no diâmetro luminal mínimo. O
estudo não teve força para avaliar endpoints clínicos, mas
houve uma redução de 23% nos eventos cardíacos no
grupo fenofibrate. A eficácia dos fibratos parece, pois,
maior nos pacientes com síndrome metabólica.
Estratégias de manuseio da hiperlipidemia
O primeiro passo numa estratégia de redução de
triglicerídeos é a modificação do estilo de vida. De todas
as frações lipídicas séricas, os triglicerídeos constituem as
mais sensíveis às modificações dietéticas. No Nurses
Health Study, 84.129 mulheres foram observadas por
14 anos. Nos indivíduos cujo estilo de vida correspondia
às diretrizes recomendadas sobre fumo, peso, dieta, exercício
e álcool, o risco relativo de desenvolver doença
coronariana recente foi de apenas 17% do risco de todos
os homens e mulheres na coorte, levando os autores a
concluir que mais de 80% dos eventos cardiovasculares
nesta coorte poderiam ser atribuíveis aos fatores ligados
ao estilo de vida. Apenas 3% desta coorte, no entanto, se
enquadravam nestas diretrizes de estilo de vida.
A terapêutica por estatinas resulta numa redução
substancial nos níveis de LDL e triglicerídeos, particularmente
quando altas doses de estatinas possantes
são utilizadas. A redução dos triglicerídeos séricos é
grosseiramente comparável àquela que pode ser obtida
com os fibratos, e a elevação concomitante do HDL
é também de magnitude similar. Conseqüentemente,
a maior parte dos lipidologistas preferem iniciar a terapêutica
com uma estatina quando o LDL está elevado
e os triglicerídeos são menores do que 400mg%.
Quando os níveis de LDL colesterol atingem os limites
considerados satisfatórios mas os triglicerídeos continuam
elevados, é necessária a adição de fibrato ou
niacina para o tratamento.
A terapêutica medicamentosa múltipla é às vezes
apropriada. Se a niacina é adicionada, uma atenção
particular deve ser dedicada aos níveis séricos de glicose.
Se um fibrato é usado em conjunto com uma estatina,
o médico precisa estar alerta para o desenvolvimento
potencial de miosite ou rabdomiólise. O doente precisa
estar informado para relatar ao médico qualquer
dolorimento muscular que se desenvolva. O uso
concomitante de estatinas com outros medicamentos
cria a necessidade de uma monitorização mais rigorosa
dos níveis de enzimas hepáticas.
Quando os triglicerídeos séricos excedem
300mg% a 400mg% e o LDL está em um nível relativamente
normal, os fibratos são a primeira opção
de terapêutica. Uma segunda droga hipolipemiante
deve ser adicionada se os outros parâmetros permanecerem
anormais após a redução dos triglicerídeos
para menos de 200mg%. Aparentemente, pois, a
melhor estratégia para o tratamento da elevação
dos triglicerídeos séricos acima de 400mg% é primeiro
o foco nos triglicerídeos séricos; quando os
triglicerídeos estão menores do que 400mg%, o primeiro
foco deve ser no LDL.