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    A compreensão da base genética na doença arterial coronariana pode melhorar o seu manejo e prevenção. Os conhecimentos atuais sobre o assunto derivam de estudos familiares, em gêmeos, em modelos animais e em estudos de associação de genes, e todos eles confirmam uma participação genética na doença arterial coronariana. Os genes contribuem para o seu desenvolvimento e progressão e para a resposta aos fatores de risco, à sua modificação, e para o efeito do estilo de vida. Os estudos familiares são os melhores indicadores da predisposição à doença arterial coronariana, e refinamentos maiores são possíveis com os testes bioquímicos e de DNA. Muitos fatores de risco de doença cardiovascular herdada podem ser modificados, tais como o LDL-colesterol, a homocisteína e a lipoproteína A. A detecção precoce da doença arterial coronariana pode levar a intervenções mais precoces em indivíduos geneticamente suscetíveis. Contudo existem poucos dados relativos à eficácia deste método de prevenção para eventos clínicos importantes. O conhecimento da predisposição genética da doença arterial coronariana tem valor no manuseio da informação de riscos e para dirigir decisões terapêuticas, embora exista uma falta de evidência para este fenômeno. Isto faz com que novas pesquisas sejam necessárias para investigar os resultados da avaliação do risco genético na doença arterial coronariana. Autores
    Edson A. Saad - Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF); Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

    José Geraldo de Castro Amino - Coordenador de Pesquisa no Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras/Ministério da Saúde.


              Trataremos subseqüentemente: 1) da evidência de que fatores genéticos podem contribuir para o desenvolvimento e a história natural da doença arterial coronariana; e 2) do papel da avaliação de risco genético na prevenção da doença arterial coronariana.

    O papel da genética

              Vários processos bioquímicos estão envolvidos na formação, na progressão da aterosclerose e nas síndromes coronarianas agudas, incluindo o metabolismo lipídico e das apolipoproteínas, resposta inflamatória, função endotelial, função plaquetária, trombose, fribrinólise, metabolismo na homocisteína, sensibilidade a insulina e regulação da pressão arterial. Cada um destes processos bioquímicos tem constituintes múltiplos como enzimas receptoras e ligandos, que são codificados pelos genes. Variações nos genes podem alterar a função destes constituintes, dentro de vias que resultam em suscetibilidade variável ao desenvolvimento e à progressão da aterosclerose. Geralmente a doença arterial coronariana pode ser considerada uma interação entre vários genes favoráveis e desfavoráveis e fatores ambientais. Os pacientes com maior número de fatores de risco, incluindo genéticos e ambientais, têm o maior risco de desenvolver aterosclerose em estágios precoces. Os fatores de risco ambientais e estilos de vida que predispõem a aterosclerose são os prevalentes nas sociedades ocidentais, incluindo o fumo, a inatividade e o excesso de calorias com alto teor de ingesta de lipídios. Como para a maioria das doenças comuns da idade adulta, a maior parte dos fatores genéticos que contribuem para a doença arterial coronariana é prevalente na população e de penetração baixa. Raramente a sensibilidade à aterosclerose é resultado de uma mutação genética única, como, por exemplo, acontece na hipercolesterolemia familiar devida a mutações do receptor LDL ou a mutações da apolipoproteína P, que estão presentes em 1:500 e em 1:1.000, respectivamente. Várias linhas de investigação fornecem evidências para uma base genética da doença arterial coronariana e os seus fatores de risco. Os métodos de investigação incluem o estudo de agregação familiar, de gêmeos, de modelos animais e das associações de genes.

    Agregação familiar

              Estudos de caso-controle mostram uma média de aumento de duas a três vezes do risco de doença arterial coronariana nos parentes de primeiro grau. História familiar de doença arterial coronariana antes dos 60 anos em um parente de primeiro grau é um fator de risco independente para o desenvolvimento de infarto do miocárdio precoce depois de correção para os fatores de risco tradicionais. Estudos prospectivos mostram que existe um aumento de uma e meia a duas vezes no risco de doença arterial coronariana associada a história familiar depois do ajuste para os fatores de risco tradicionais. Os fatores de risco associados com a doença arterial coronariana também têm agregação em famílias doentes, e neste caso estão as anormalidades lipídicas, a hipertensão, o diabetes e a obesidade, sugerindo uma base genética para estas condições e explicando em parte a agregação familiar de coronariopatia.
               Estudos angiográficos demonstram que uma história familiar de coronariopatia é um fator de risco preditivo independente para a coronariopatia angiograficamente evidente. Também existe uma correlação entre a extensão da coronariopatia e a história familiar de infarto do miocárdio.
               História familiar de coronariopatia também está associada a evidências pré-clínicas de aterosclerose, como medidas, pelo índice de espessamento, da íntima para média nas artérias carótidas. Estudo recente mostra que evidências de coronariopatia estão presentes e são detectáveis por métodos não-invasivos, como a medida do espessamento na íntima e na média carotídea em indivíduos jovens com parentes com história prematura de coronariopatia. Um estudo epidemiológico genético analisou dados relativos a 19 fatores de risco tradicionais em 207 pacientes com infarto do miocárdio antes dos 55 anos e 621 controles. Em uma análise univariada, a razão de chance mais elevada estava associada à história familiar nos parentes de primeiro grau que desenvolveram doença coronariana antes dos 55 anos, e o risco estava aumentado 7,1 vezes nos parentes que foram diagnosticados antes dos 65 anos. Estes riscos são substancialmente maiores do que os associados com a elevação do colesterol acima de 270mg% (razão de chance = 4,3), fumo de pelo menos um maço de cigarros por dia (razão de chance 4), inatividade (razão de chance = 3,4). Este estudo mostra ainda que a hereditariedade para o início ou a ocorrência precoce da doença arterial coronariana é 0,63 e, após a exclusão de anormalidades aparentemente monogênicas do metabolismo lipídico, a estimativa é de 0,56, sugerindo que mais da metade da doença arterial coronariana diagnosticada antes da idade de 55 anos seja devida à contribuição de genes. Finalmente, vários estudos que investigaram a agregação familiar na coronariopatia aterosclerótica demonstraram que, quanto mais cedo é o início desta doença, maior é o risco dos parentes em primeiro grau. Em adição, o risco da doença é tipicamente muitas vezes maior em parentes de mulheres-caso em comparação com os homens.
               Estas características demonstram o tipo poligênico/ multifatorial da herança da doença arterial coronariana, com a ocorrência de doença clínica representando um limiar de vários fatores que se abatem sobre as mulheres e adultos jovens menos suscetíveis, mas que apresentam uma carga acentuada de genes predisponentes, transmitindo, assim, uma grande carga genética à sua descendência. Em famílias com doença arterial coronariana com início antes dos 46 anos, a hereditariedade é estimada em 90% a 100%, enquanto que em famílias dos casos que adquiriram doença coronariana mais tardiamente, o papel da hereditariedade varia entre 15% e 30%.

    Estudos em gêmeos

              Gêmeos têm sido úteis no estudo da contribuição genética a várias doenças comuns. Uma elevada concordância de um traço em gêmeos monozigóticos que compartilham todos os seus genes, em comparação com os gêmeos dizigóticos, que têm apenas a metade dos genes idênticos, sugere um componente genético. Os dados da contribuição genética à doença arterial coronariana em gêmeos provêm, principalmente, de um estudo dinamarquês iniciado em 1954 e que inclui cerca de 8 mil pares de gêmeos não-selecionados.
               Uma diferença significativa em concordância para mortes por doença coronariana foi observada em gêmeos monozigóticos em comparação com os dizigóticos, em homens e mulheres: 39% vs. 26% e 44% vs. 14%, respectivamente. Os estudos mostram também um índice de concordância similar para infarto do miocárdio fatal e não-fatal.

    Modelos animais

              Excelentes modelos animais de mesma linhagem existem para aterosclerose e condições associadas: hipertensão, diabetes melito, dislipidemias e obesidade. Associações de genes em modelos animais podem mesmo resultar na identificação de genes candidatos para estudos em famílias de humanos.

    Estudos de associações de genes

              Vários polimorfismos genéticos estão associados com aterosclerose (Quadro 1). Genericamente eles são genes candidatos de vias bioquímicas implicadas no desenvolvimento e na progressão da aterosclerose. Inúmeros estudos mostraram associações de genes com doenças relacionadas e indiretamente implicadas no desenvolvimento e na progressão da coronariopatia, tais como hipertensão, obesidade e diabetes.
               Investigações recentes utilizando avaliação genômica encontraram locais genéticos adicionais associados com doença arterial coronariana, hipertensão e diabetes. Análises de ligação em famílias com aterosclerose prematura mostraram evidências para ligações com uma região do cromossoma 2q21.1-22 e Xq23-26.
               Alguns fatores genéticos aumentam a progressão e a incidência de eventos clínicos coronarianos por influenciar as respostas às modificações dos fatores de risco e estilo de vida, tais como dieta, álcool e uso de terapêutica de substituição hormonal pós-menopausa. Para citar um só exemplo, um estudo recente mostrou que 40% da variação individual do colesterol LDL em resposta à dieta com redução de gorduras saturadas representam um traço familiar.

    Mensuração da suscetibilidade
    genética à doença arterial
    coronariana

              Suscetibilidade genética para doença arterial coronariana pode ser avaliada por vários métodos que incluem testes com base em DNA, avaliação fenotípica de traços bioquímicos, características físicas, bem como história pessoal e familiar. O exame físico pode mostrar dados importantes, tais como xantomas tendinosos e xantelasmas encontrados nas doenças hereditárias dos lipídios, o estigma de síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos e pseudoxantoma elástico. Contudo estas síndromes hereditárias são raras e respondem apenas por uma pequena porcentagem de doença cardiovascular.
               Por outro lado os marcadores de DNA associados com o risco de doença arterial coronariana são geralmente prevalentes e de baixa magnitude, de tal forma que isoladamente eles não são altamente preditores de risco de doença coronariana. Portanto a história familiar sistemática parece no momento ser a mais apropriada avaliação para identificação de indivíduos com suscetibilidade genética a doença coronariana. O Quadro 2 mostra as características na história familiar de suscetibilidade genética a doença arterial coronariana. Agregação familiar de doença arterial coronariana, acidente vascular cerebral, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes do tipo 2 sugerem resistência à insulina referida com freqüência como síndrome X. De um modo geral, os relatórios da história familiar de doença coronariana são geralmente acurados, com uma sensibilidade de 67% a 85%. Ocorrência na história familiar de diabetes e hipertensão tem uma sensibilidade semelhante. Os valores de especificidade para a ocorrência na história clínica familiar destas condições se aproximam de 90%.
               Assim, uma história familiar positiva pode geralmente ser usada com alto grau de confiança para identificação de indivíduos que podem estar em risco aumentado de desenvolver doença arterial coronariana. História familiar de doença cardiovascular, incluindo doença arterial coronariana, acidente vascular e síndrome X, é a característica mais comum e relatada em 34% dos casos de coronariopatia.

    Aplicação clínica da
    informação de suscetibilidade
    genética na prevenção da
    coronariopatia

              A redução do colesterol é uma importante estratégia clínica para a prevenção primária e secundária da doença arterial coronariana. Contudo, a despeito de uma redução lipídica efetiva, uma proporção substancial de indivíduos desenvolve aterosclerose coronariana ou tem progressão da sua doença. Em adição, vários investigadores manifestam a sua preocupação em relação a segurança e custo/efetividade desta forma de prevenção.
               Além disto, um colesterol elevado não é um preditor sensível de indivíduos com a maior possibilidade genética para doença arterial coronariana. Em um estudo de adultos com doença arterial coronariana prematura, apenas 38% tinham valores lipídicos anormais. A anormalidade mais comum foi a elevação da LP(a), que ocorreu em 19% dos casos e que não é detectada com o exame rotineiro do colesterol, e apenas 3% tinham LDL-colesterol elevado.
               A doença arterial coronariana é uma desordem heterogênea. Portanto não é razoável esperar que uma via simples de prevenção possa existir para todos os pacientes. O conhecimento da suscetibilidade genética à doença coronariana pode identificar diferenças biológicas importantes que poderiam vir a melhorar o manuseio e a prevenção da doença coronariana através de terapêuticas dirigidas. A incapacidade de reconhecer estas diferenças pode resultar em falta de acesso apropriado aos cuidados médicos daqueles pacientes que se beneficiariam de estratégias de manuseio e prevenção alternativas.
               A melhoria em vários fatores de risco cardiovasculares hereditários é possível. Por exemplo, a suplementação com co-fatores envolvidos no metabolismo da homocisteína, como as vitaminas B6 e B12 e os folatos, é eficaz para reduzir os níveis de homocisteína, particularmente se existe uma deficiência vitamínica. Do mesmo modo, o uso de estrogênios e testosterona em homens e mulheres e de ácido nicotínico reduz a lipoproteína A. Contudo faltam dados relativos à eficácia da prevenção de eventos clínicos cardiovasculares em indivíduos que tiveram modificados fatores genéticos mais recentemente descritos, como a homocisteína e a lipoproteína A. A despeito destes fatos, indivíduos com maior suscetibilidade genética para doença arterial coronariana detectada na história familiar e na presença de novos fatores de risco podem ter um grande benefício com as estratégias preventivas tradicionais, como a variação e o tratamento dos níveis elevados de colesterol.

    Estratégias para detecção
    Precoce

              Estratégias para detecção precoce de doença arterial coronariana não são geralmente recomendadas para a população em geral, uma vez que muitos métodos não têm sensibilidade e especificidade adequadas, enquanto que outros são muito invasivos ou dispendiosos. A despeito disto, o uso e a detecção precoce da doença coronariana com a tomografia por feixe de elétrons podem ser custoefetivos para indivíduos de alto risco segundo sua suscetibilidade genética. Existe uma evidência considerável de que as calcificações coronarianas se correlacionam altamente com a presença e o grau de doença coronariana obstrutiva, ou não-obstrutiva, e infarto não-fatal, tornando necessária a revascularização coronariana em indivíduos assintomáticos ou sintomáticos. Também os estudos com tomografia por feixe de elétrons, como o Spect, são capazes de identificar isquemia silenciosa significativa. Nenhum dos pacientes com score coronariano menor que 10 teve uma imagem de Spect positiva. Cintilografias anormais são encontradas em 2,6% com score de 11 a 100; 11,3%, com score de 101 a 399; e 40% com score de 400 ou mais.
               Quando a doença coronariana é identificada em indivíduos com alto risco de suscetibilidade genética, uma conduta mais agressiva para modificação dos fatores de risco e uma consideração de intervenção com medidas profiláticas, como a angioplastia coronariana ou a cirurgia de revascularização miocárdica, pode estar indicada.

    Aconselhamento e educação
    genética em relação à
    suscetibilidade à doença arterial
    coronariana

              Um objetivo importante da avaliação genética na doença arterial coronariana é o desenvolvimento de estratégias preventivas individualizadas baseadas na avaliação do risco genético, bem como na história médica do paciente, no estilo de vida e nas preferências.
               A participação dos pacientes no processo é vital para o sucesso do plano preventivo. O aconselhamento genético é um componente integral da avaliação genética e é crítico para delinear motivação de pacientes e a sua compreensão da avaliação do risco genético.
               Via de regra os indivíduos estão motivados a participar da avaliação do risco genético com esperança de que ela irá mostrar o plano mais apropriado para o manuseio e a prevenção da doença e também pelos benefícios que a informação genética pode trazer para os seus familiares. Vários estudos mostraram que uma história familiar pode influenciar na adesão à avaliação dos lipídios e outras intervenções preventivas. Existem barreiras à obtenção de informação do risco genético que incluem o medo de discriminação quer no local de trabalho, quer com seguradoras, custo e incerteza a propósito do valor da intervenção. A evidência de discriminação genética em indivíduos normais é mínima. Desde 1990 tem havido um interesse crescente relativo ao uso de informação genética por seguradoras de saúde. Em 1996 o Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA) se tornou, nos Estados Unidos, a primeira lei federal para limitar o uso de dados genéticos por seguradoras de saúde. Ele proíbe a planos de medicina de grupo, por exemplo, usar a predisposição genética à doença como uma condição preexistente que poderia retardar ou limitar a cobertura de saúde.

    Triglicerídeo: fator de risco
    ou companheiro de viagem?

              Um assunto não resolvido na cardiologia preventiva é se os triglicerídeos séricos são um fator de risco independente de doença arterial coronariana e, conseqüentemente, se possuem valor como teste diagnóstico.
               Evidências publicadas a partir do ano 2000 contribuíram substancialmente para clarificar este assunto.

    Metabolismo dos triglicerídeos

              Os triglicerídeos são formados no processo de transferência de gordura do intestino para o sangue.
               Neste processo eles são veiculados principalmente pelas proteínas de muito baixa intensidade (VLDL). Os triglicerídeos são metabolizados pela lipase lipoprotéica para um remanescente que é removido durante a passagem através do fígado, onde ele também é armazenado.
               Alguns destes remanescentes são metabolizados pela lipase hepática em lipoproteínas de baixa densidade (LDL), que também são armazenadas no fígado.
               Pacientes com doença arterial coronariana e diabetes exibem diferenças substanciais no seu metabolismo dos triglicerídeos em relação aos indivíduos normais. Em pacientes com doença arterial coronariana, os níveis pós-prandiais de triglicerídeos são aproximadamente o dobro daqueles que ocorrem nos normais 4 a 5 horas após a ingestão de uma refeição gordurosa.
               Imagens ultra-sônicas carotídeas mostram que a ecotransparência das placas ateroscleróticas está associada com o aumento dos níveis de lipoproteínas ricas em triglicerídeos, bem como com o seu conteúdo lipídico. A hipertrigliceridemia pós-prandial se correlaciona com a espessura da íntima e média das carótidas. Quilomícrons ou os seus remanescentes penetram na parede aórtica tão eficientemente quanto as moléculas menores, incluindo o LDL e o HDL. A velocidade de acumulação na parede de um vaso e a duração da retenção de quilomícrons/remanescentes radioativos são maiores do que as do LDL, e são positivamente relacionadas ao grau de hiperglicemia. Conseqüentemente um mecanismo pelo qual os triglicerídeos podem contribuir para um aumento do risco de aterosclerose é diretamente através do acúmulo na parede do vaso, iniciando-se um processo bem estabelecido que acompanha a acumulação das lipoproteínas de baixa densidade.

    Níveis séricos de triglicerídeos e risco de
    doença arterial coronariana

              Os níveis de triglicerídeos séricos têm sido positivamente associados com o risco de desenvolver doença arterial coronariana. Por exemplo, na base de dados de Framingham, Castelli et al. encontraram um incremento de duas vezes no risco de doença coronariana em pacientes com níveis de triglicerídeos séricos na faixa de 250mg% a 400mg% em comparação com aqueles na faixa de 50mg% a 100mg%. Uma das maiores bases de dados epidemiológicos da hipertrigliceridemia, o Munster Heart Study (Procam), envolve cerca de 13.737 homens e 5.961 mulheres observados por oito anos.
               Neste estudo, níveis moderadamente elevados de triglicerídeos constituem um fator de risco para doença coronariana, independentemente de LDL e HDL. Metanálise do risco de doença arterial coronariana em relação aos níveis de triglicerídeos séricos sugere que um nível elevado de triglicerídeos confere um risco aumentado para desenvolver doença coronariana mesmo após o ajuste para HDL colesterol. A dificuldade em atribuir um risco independente para os triglicerídeos em relação à doença arterial coronariana é, contudo, a sua típica e íntima associação com outros fatores de risco.
               Triglicerídeos elevados constituem um importante componente da chamada síndrome metabólica, que inclui obesidade, hipertensão, hipertrigliceridemia, diminuição das lipoproteínas de alta densidade (HDL), predomínio das lipoproteínas pequenas, densas, de baixa densidade (LDL), diminuição da tolerância a glicose e insulinorresistência. Em um estudo elegante, Sprecher et al. analisaram o significado prognóstico em quatro dos componentes das síndromes metabólicas, a saber: obesidade, diabetes, hipertensão e hipertrigliceridemia em 6.428 pacientes pós-cirurgia de by-pass aortocoronariano, durante oito anos, na Cleveland Clinic. A mortalidade analisada variou de 1% naqueles sem nenhum fator de risco a 3,3% naqueles com todos os quatro fatores de risco. Separando homens e mulheres, o risco para os que têm quatro fatores de risco foi de 2,6% nos homens e 13,4% nas mulheres. Importantemente, a sobrevida dos pacientes sem os componentes da síndrome excedeu a 95% em oito anos, enquanto que aqueles com a síndrome tiveram uma sobrevivência de apenas 80%.
               Como a insulinorresistência é associada com aumento substancial na prevalência de lipoproteínas de baixa densidade, lipoproteínas de alta densidade e triglicerídeos séricos reduzidos, não é possível separar estes componentes individuais do padrão lipídico ou atribuir um aumento de risco de doença coronariana a um fator lipídico individualmente. Com base nestes estudos é possível concluir, contudo, que os níveis elevados de triglicerídeos estão associados com um aumento substancial no risco de doença coronariana, e que os triglicerídeos séricos se agrupam com outros fatores que predispõem ao risco aumentado e que esta agregação impede a análise de associação independente de um destes fatores com a incidência de doença coronariana. Conseqüentemente, as medidas de triglicerídeos séricos têm valor como instrumento diagnóstico.

    O impacto dos ensaios clínicos

              Durante vários anos o melhor estudo sobre a terapêutica para reduzir os triglicerídeos séricos foi o Helsinki Heart Study, conduzido em 4.081 pacientes entre 40 e 55 anos assintomáticos e dislipidêmicos. Nestes pacientes, o genfibrosil na dose de 600mg duas vezes ao dia foi comparado com placebo em um período de cinco anos.
               O colesterol total e o LDL reduziram-se em 10% e 11%, respectivamente, e o HDL aumentou em 11%. Os triglicerídeos séricos baixaram 35%. Estas alterações nos parâmetros lipídicos foram acompanhadas por uma redução de 34% na incidência de doença arterial coronariana. Estes dados sugerem que a redução dos triglicerídeos séricos tem benefício terapêutico, mas, devido ao fato de que o HDL colesterol foi também alterado numa direção benéfica e que não existem estudos confirmatórios, o assunto permaneceu não-resolvido.
               Além disso, é preciso lembrar que a aplicabilidade destes estudos se faz em indivíduos de sexo masculino entre 40 e 55 anos de idade apenas. A suspeição de que os triglicerídeos possam ser um elemento ao lado e nãocausal foi confirmada por uma análise de subgrupos dos dados de Helsinki, que apontaram o colesterol HDL basal como um fator crítico. O benefício da redução dos níveis séricos de triglicerídeos foi confinado ao grupo com relação LDL/HDL > 5, não tendo havido diferença entre o placebo e o grupo de tratamento quando esta relação LDL/HDL foi 5. Assim, embora a redução dos triglicerídeos reduza a incidência de doença arterial coronariana, o mecanismo responsável por este efeito benéfico ainda não foi elucidado. Muitos anos se passaram até que um outro importante ensaio de redução de lipídios tivesse sido relatado. O ensaio Becait comparou o destino angiográfico de 81 pacientes tratados com bezafibrato ou placebo e observados por um período de cinco anos. Neste grupo os triglicerídeos séricos foram reduzidos em 46%, e o VLDL, em 53%, enquanto que o HDL aumentou 9% com uma mudança na distribuição dos LDL para partículas mais largas no grupo tratado com bezafibrato. Alterações no colesterol total e no LDL foram relativamente insignificantes. Após cinco anos, o grupo tratado demonstrou um aumento de 0,13mm no diâmetro luminal coronariano mínimo, enquanto que no grupo placebo não houve tal benefício. Estes dados parecem demonstrar a possibilidade de um efeito benéfico da redução dos triglicerídeos séricos e/ou da elevação de HDL.
               Os dados do Becait foram validados pelo ensaio Vahit publicado em 1999. Neste ensaio, 2.531 pacientes com doença coronariana e com HDL baixo (menor que 40mg%), mas níveis relativamente normais de LDL (140mg%), foram tratados com genfibrosil na dose de 1.200mg por dia por cinco anos. As lipoproteínas de baixa densidade não foram modificadas durante o tratamento, enquanto que os triglicerídeos caíram 31% e o HDL aumentou 6%. Estas alterações no perfil lipídico estiveram associadas com uma redução de 20% a 25% no infarto do miocárdio, na morte e em acidente vascular cerebral. Com base nestes dados, por- tanto, é possível propor que existe um padrão consistente: pacientes com níveis baixos de HDL, com ou sem doença arterial coronariana conhecida, têm uma redução substancial no número de eventos cardíacos, com o benefício da redução dos triglicerídeos séricos induzido pelo fibratos, os quais eram acompanhados por um modesto aumento de HDL e por nenhuma alteração significativa de LDL.
               Pouco depois da publicação do ensaio Vahit, o Bezafibrato Infarction Prevention Trial (BIP) foi publicado. Este ensaio envolveu 3.090 pacientes portadores de doença arterial coronariana observados por 6,2 anos. Os dados de lipídios, duração do follow-up e magnitude da alteração dos fatores lipídicos individuais foram grosseiramente comparáveis com aqueles do ensaio Vahit.
               Neste estudo não houve um decréscimo significativo na mortalidade cardíaca, e apenas 9,4% de diminuição de eventos cardíacos não-fatais (p = 0,26). Essa diferença se deve à convergência da curva de eventos, refletindo um achatamento não-explicado da curva de placebo no final do estudo. As diferenças entre o Vahit e o BIP continuam não-explicadas.
               Neste contexto, o ensaio mais recente, o Diabetes Atherosclerosis Intervention Study (Dais), parece confirmar os resultados do Vahit, do Becait e de outros ensaios. No Dais, 418 pacientes diabéticos do tipo 2 com doença coronariana angiograficamente comprovada foram tratados com fenofibrate 200mg ou placebo micronizado diariamente, por três anos, sendo, então, o estudo angiográfico repetido. As lipoproteínas de baixa densidade diminuíram apenas 5%, mas os triglicerídeos diminuíram 30% e o HDL aumentou 8%. Pacientes no grupo fenofibrate tiveram aumentos significativamente menores no diâmetro de estenose e menores diminuições no diâmetro luminal mínimo. O estudo não teve força para avaliar endpoints clínicos, mas houve uma redução de 23% nos eventos cardíacos no grupo fenofibrate. A eficácia dos fibratos parece, pois, maior nos pacientes com síndrome metabólica.

    Estratégias de manuseio da hiperlipidemia

              O primeiro passo numa estratégia de redução de triglicerídeos é a modificação do estilo de vida. De todas as frações lipídicas séricas, os triglicerídeos constituem as mais sensíveis às modificações dietéticas. No Nurses Health Study, 84.129 mulheres foram observadas por 14 anos. Nos indivíduos cujo estilo de vida correspondia às diretrizes recomendadas sobre fumo, peso, dieta, exercício e álcool, o risco relativo de desenvolver doença coronariana recente foi de apenas 17% do risco de todos os homens e mulheres na coorte, levando os autores a concluir que mais de 80% dos eventos cardiovasculares nesta coorte poderiam ser atribuíveis aos fatores ligados ao estilo de vida. Apenas 3% desta coorte, no entanto, se enquadravam nestas diretrizes de estilo de vida.
               A terapêutica por estatinas resulta numa redução substancial nos níveis de LDL e triglicerídeos, particularmente quando altas doses de estatinas possantes são utilizadas. A redução dos triglicerídeos séricos é grosseiramente comparável àquela que pode ser obtida com os fibratos, e a elevação concomitante do HDL é também de magnitude similar. Conseqüentemente, a maior parte dos lipidologistas preferem iniciar a terapêutica com uma estatina quando o LDL está elevado e os triglicerídeos são menores do que 400mg%.
               Quando os níveis de LDL colesterol atingem os limites considerados satisfatórios mas os triglicerídeos continuam elevados, é necessária a adição de fibrato ou niacina para o tratamento.
               A terapêutica medicamentosa múltipla é às vezes apropriada. Se a niacina é adicionada, uma atenção particular deve ser dedicada aos níveis séricos de glicose. Se um fibrato é usado em conjunto com uma estatina, o médico precisa estar alerta para o desenvolvimento potencial de miosite ou rabdomiólise. O doente precisa estar informado para relatar ao médico qualquer dolorimento muscular que se desenvolva. O uso concomitante de estatinas com outros medicamentos cria a necessidade de uma monitorização mais rigorosa dos níveis de enzimas hepáticas.
               Quando os triglicerídeos séricos excedem 300mg% a 400mg% e o LDL está em um nível relativamente normal, os fibratos são a primeira opção de terapêutica. Uma segunda droga hipolipemiante deve ser adicionada se os outros parâmetros permanecerem anormais após a redução dos triglicerídeos para menos de 200mg%. Aparentemente, pois, a melhor estratégia para o tratamento da elevação dos triglicerídeos séricos acima de 400mg% é primeiro o foco nos triglicerídeos séricos; quando os triglicerídeos estão menores do que 400mg%, o primeiro foco deve ser no LDL.