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    A abordagem do paciente valvar oferece um espectro amplo desde a primeira avaliação até a sala de cirurgia. O momento exato de indicação cirúrgica tem apresentado mudanças ao longo do tempo. Fatores antes considerados de mau prognóstico hoje são pouco valorizados, pelo evidente progresso na cirurgia cardíaca nos últimos 30 anos. Este processo é contínuo e muitas das atuais indicações talvez não mais o sejam em alguns anos.
    Autores

    Pablo Maria Alberto Pomerantzeff - Livre-Docente em Cirurgia pela Universidade de São Paulo (USP); Diretor da Unidade Cirúrgica de Valvopatia do Instituto do Coração (Incor).

    Roney Orismar Sampaio - Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP.

    Carlos Manuel de Almeida Brandão - Doutor em Cirurgia Torácica e Cardiovascular pela Faculdade de Medicina da USP; Médico Assistente da Unidade Cirúrgica de Valvopatia do Incor.

    Max Grinberg - Professor Livre-Docente pela FM/USP; Diretor da Unidade Clínica de Valvopatia do Incor.


    Valva mitral

              A valvopatia mitral por obstrução, estenose mitral, caracteriza-se pela lenta evolução até sintomas incapacitantes. A presença de classes funcionais III e IV pelo New York Heart Association (NYHA) é a indicação padrão para tratamento cirúrgico (Quadro). Em pacientes em classe funcional II ou I as indicações variam de acordo com a presença de hipertensão pulmonar ou sinais de tricuspidização. A morfologia valvar é de importância ímpar, pois, em presença de escore ecocardiográfico menor ou igual a oito (usando-se os critérios universalmente aceitos: mobilidade, espessamento, aparelho subvalvar e calcificação da valva mitral), é factível - e até mandatório quando há disponibilidade local - a realização de procedimento percutâneo. Diretrizes internacionais sugerem tratamento precoce por valvuloplastia por balão (VPCB) mesmo no paciente assintomático, se houver área valvar menor que 1,5cm2, argumentando que há preservação dos mecanismos(1). Contudo, alerte-se que a VPCB não é um procedimento isento de riscos, e preferimos indicá-la quando, de fato, houver incapacidade física progressiva ou pressão pulmonar elevada (ao menos acima de 60mmHg) (Quadro). As pacientes grávidas fazem parte de um grupo especial em que, por vezes, é necessária a VPCB durante a gestação. Sempre que houver indicação clínica de intervenção e desejo da paciente de engravidar, a VPCB deve preceder a gestação, dentro de um planejamento familiar.
               Número considerável de pacientes apresenta anatomia desfavorável à VPCB e, nesta situação, a comissurotomia mitral a céu aberto, com o auxílio da circulação extracorpórea, torna-se a cirurgia de eleição. O acesso à valva mitral é realizado rotineiramente através da atriotomia esquerda, com inspeção cuidadosa da aurícula esquerda para a investigação de trombos. Em muitos casos, associamos a papilarotomia, bem como a remoção de cálcio ou fibrose. Na presença de sinéquia papilovalvar, o papilar deve ser seccionado ao meio, deixando-se apoio para as duas cúspides. Após a abertura da valva, deve-se testar a mesma quanto à presença de insuficiência, através da injeção de solução salina no ventrículo esquerdo, com o coração batendo, ou através de método complementar de melhor acurácia: o ecocardiograma transesofágico.
               O tratamento cirúrgico da estenose mitral tem apresentado resultados satisfatórios, com baixa morbimortalidade. Estudando 44 pacientes submetidos a comissurotomia mitral, notamos uma diminuição significativa do gradiente transvalvar médio após 12 meses e aumento significativo da área. Não houve mortalidade operatória e todos os pacientes involuíram para classe funcional I (NYHA)(2).
               A insuficiência mitral crônica caracteriza-se pela remodelação progressiva das câmaras esquerdas(3). A complacência atrial permite o represamento de grandes volumes com manutenção da pressão pulmonar em níveis adequados por longo período. A perda dos mecanismos adaptativos resulta em disfunção ventricular, aparecimento de arritmias supraventriculares, como a fibrilação atrial ou sintomas de insuficiência cardíaca congestiva. Assim como observado na estenose mitral, fatores de mau prognóstico como a hipertensão pulmonar ou o aparecimento de fibrilação atrial sugerem avanço na história natural. Todavia sinais de exaustão dos mecanismos de remodelação ventricular nem sempre são facilmente identificáveis. Assim, discutem-se sugestões de tratamento cirúrgico cada vez mais precoce. Pacientes em classe funcional avançada (III e IV/NYHA) necessitam de correção cirúrgica imediata (Quadro). A disfunção ventricular esquerda é também um marco para a indicação operatória.


               Pacientes em classe funcional II, e sobretudo em classe funcional I, formam um grupo à parte. Este grupo freqüentemente está associado a refluxo mitral de longa data e necessitam de correção cirúrgica na maioria das vezes. Os diâmetros ventriculares servem de orientação para conduta, mas não podem ser determinantes. O uso de medidas ventriculares, como 45mm de diâmetro sistólico, tem sido preconizado(1) na tentativa de facilitar a indicação (Quadro). Além de insuficiente, é controverso e perigoso admitir um paciente na sala de cirurgia com base exclusiva nos seus diâmetros ventriculares. Não há garantia da preservação da função ventricular e ao mesmo tempo há a morbimortalidade operatória. A anatomia valvar, mais uma vez, é um determinante importante da conduta. A preservação da valva em portadores de prolapso mitral, especialmente do folheto posterior, determina maior precocidade na indicação operatória, mesmo em pacientes oligossintomáticos. Vale lembrar que diretrizes são determinações gerais de conduta, baseadas em estudos científicos nem sempre suficientemente consistentes, e muitos casos necessitam de individualização. A correção cirúrgica da valva mitral pode ser por plástica ou troca de valva. O termo plástica nas cirurgias valvares é utilizado para designar técnica ou conjunto de técnicas que possibilita a correção do refluxo nas lesões valvares. As vantagens da plástica mitral sobre a substituição valvar são a menor morbimortalidade, menor taxa de tromboembolismo e endocardite bacteriana, e melhor função ventricular esquerda. Nos pacientes jovens, a plástica mitral adquire maior importância, uma vez que a calcificação das biopróteses é precoce e a anticoagulação para os portadores de próteses mecânicas não é isenta de riscos. Para a obtenção de bons resultados com a plástica da valva mitral é necessário o conhecimento da anatomia normal da valva mitral, bem como o domínio de várias técnicas de reconstrução. O estudo ecodopplercardiográfico pré-operatório auxilia no planejamento da reconstrução valvar, assim como o exame ecodopplercardiográfico esofágico intra-operatório na avaliação do resultado.
               Quando a insuficiência mitral for secundária à dilatação do anel, podem-se utilizar anéis protéticos, como os de Carpentier, Gregori, Duran, Cosgrove, ou a anuloplastia posterior com tira de pericárdio bovino. Nos pacientes com alongamento de cordas, pode-se encurtá-las junto ao papilar, à cúspide, ou encurtar os papilares. A rotura de cordas da cúspide posterior secundária à degeneração mixomatosa pode ser corrigida com a ressecção quadrangular da porção correspondente da cúspide, anuloplastia segmentar com reforço de tiras de teflon e sutura borda a borda da cúspide. Quando a rotura de cordas for da cúspide anterior, podem-se utilizar técnica de transferência de cordas, implante de cordas artificiais ou ressecção em cunha com plicatura da cúspide. Quando existe retração das cúspides, estas podem ser ampliadas com remendos de pericárdio autólogo ou bovino. Perfurações de cúspides também podem ser corrigidas com estes remendos.
               A plástica mitral tem sido realizada em pacientes portadores de febre reumática, prolapso devido à degeneração mixomatosa, insuficiência mitral congênita, isquêmica, pós-endocardite, endomiocardiofibrose e na miocardiopatia dilatada.
               A experiência do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com a plástica da valva mitral constitui-se de 726 casos nos últimos dez anos. A mortalidade hospitalar encontrase em torno de 4,5%, com uma sobrevida atuarial de 71,7% e 65,0% livre de reoperação(4).

    Valva tricúspide

              A cirurgia exclusiva da valva tricúspide é rara. Normalmente ocorre na doença reumática em associação com a valvopatia mitral. Muitos casos de valvopatia mitral são acompanhados de hipertensão pulmonar e dilatação de câmaras direitas. A tricuspidização é caracterizada pela progressiva insuficiência da valva tricúspide, que serve como valva de escape frente à hipertensão pulmonar progressiva e à redução da função ventricular direita. A tricuspidização representa história natural avançada e necessita de correção operatória.
               A comissurotomia, dependendo do aparelho valvar, é o tratamento cirúrgico de escolha da estenose tricúspide isolada. A insuficiência tricúspide geralmente é secundária à dilatação do anel tricuspídeo. Várias técnicas podem ser utilizadas para a correção, como a anuloplastia de De Vega, Revuelta, da mesma forma que a bicuspidização da valva tricúspide. Em casos de grandes dilatações anulares, está indicada a anuloplastia com anel de Carpentier ou com tira de pericárdio bovino, pois tem sido descrita desinserção da sutura nestes casos com a técnica de De Vega.

    Valva aórtica

    A hipertrofia concêntrica, com preservação dos diâmetros e da função do ventrículo esquerdo, caracteriza a obstrução valvar aórtica. Longo período assintomático, em geral acompanhado de elevação da pressão diastólica e disfunção ventricular esquerda, é observado até os sintomas. O grande dilema do médico diante do portador de estenose aórtica é a definição do assintomático. Muitos pacientes supostamente assintomáticos se autolimitam, talvez pelo receio do tratamento cirúrgico (Quadro). Reduzida capacidade ao exercício ou hipotensão durante ergometria sugerem estenose aórtica com repercussão hemodinâmica importante.
               A presença de área valvar menor que 0,7cm2, gradiente transvalvar acima de 60mmHg ou velocidade sistólica acima de 4m/s e intensa calcificação da valva indicam maior atenção, pois os sintomas e a indicação cirúrgica quase sempre ocorrerão em dois ou três anos. Por outro lado, hipertrofia miocárdica importante (acima de 15mm) e taquicardia ventricular não-sustentada, embora demonstrem avanço na história natural, envolvem menor risco de morte súbita, podendo ser observadas clinicamente por maior período(1). Alías, a morte súbita é rara no paciente assintomático: menor que 1%/ano, não devendo ser indicado o tratamento operatório neste grupo.
               Na estenose aórtica congênita, a valva aórtica pode se apresentar com três, duas ou, mais raramente, uma válvula indiferenciada. Nos casos mais graves, existe hipoplasia do anel aórtico ou do ventrículo esquerdo. Deve-se realizar a comissurotomia aórtica respeitando-se os pontos de sustentação da valva, de forma a obter abertura satisfatória do orifício valvar sem criar ou agravar o refluxo.
               Na estenose aórtica calcificada, degenerativa ou reumática, a comissurotomia associada à descalcificação e ao desbastamento das válvulas é factível e pode ser realizada sobretudo se o cálcio se encontra aposto ao tecido valvular. A insuficiência aórtica caracteriza-se pela presença de três compartimentos (aorta, ventrículo esquerdo e periferia) que interagem durante a história natural, postergando o aparecimento dos sintomas através dos mecanismos adaptativos. Como na insuficiência mitral, observamos a utilização de parâmetros ecocardiográficos ou hemodinâmicos, com intuito de universalizar e até mesmo uniformizar a indicação cirúrgica dos portadores de insuficiência aórtica. Não há dúvidas quanto à indicação operatória nos pacientes em classe funcional III ou IV, ou ainda na presença de disfunção ventricular. Entretanto encontramos pacientes em classe funcional II ou mesmo em classe funcional I e com diâmetros ventriculares aumentados. Pelas diretrizes norte-americanas, diâmetros diastólicos acima de 70- 75mm ou sistólicos de 50-55mm indicam tratamento cirúrgico, independente da classe funcional. A justificativa seria a disfunção ventricular esquerda pós-operatória. Contudo outros(5) não confirmaram a predominância de disfunção ventricular pós-operatória apenas pelo exagerado aumento dos diâmetros ventriculares; assim, o tema permanece controverso. Embora seja inegável o avanço da história natural neste grupo, é impossível, pelos atuais metódos, definir por parâmetros simples os beneficiários do tratamento cirúrgico precoce.
               A plástica da valva aórtica pode ser realizada em algumas situações. Quando existe prolapso das válvulas, geralmente associado à comunicação interventricular, podem-se fixar as válvulas junto às comissuras (Trusler), ou fazer plicatura na parte central das válvulas prolapsadas. Nos pacientes com retração das mesmas, geralmente reumáticos, podem-se alongar as válvulas com remendos de pericárdio bovino, além de realizar anuloplastias.
               Na dupla lesão aórtica moderada, pode-se realizar o desbastamento da fibrose, aumentando a mobilidade das válvulas e permitindo a coaptação das mesmas. Entretanto a maior parte dos casos de lesão dupla ou mesmo de refluxo isolado necessita de troca valvar. Muitos estudos foram realizados com o intuito de se determinar qual o substituto valvar ideal. Há 40 anos, Harken relatou quais seriam os mandamentos de um substituto valvar ideal: baixa trombogenicidade, boa durabilidade, pouca hemólise, facilidade de implante, não perturbar o paciente com ruído excessivo, fechar prontamente com o ciclo cardíaco, ser quimicamente inerte, não lesar os elementos figurados do sangue, não oferecer resistência aos fluxos fisiológicos, permanecer fechado durante a fase apropriada do ciclo cardíaco, ser passível de colocação em posição anatômica e permitir fixação definitiva.
               As substituições valvares apresentam maior morbimortalidade operatória e maiores taxas de tromboembolismo, hemólise e endocardite, quando comparadas às cirurgias conservadoras. As limitações das biopróteses estão relacionadas à sua durabilidade, relacionada principalmente à rotura e à calcificação. Tromboembolismo e hemorragia são as complicações temidas nos pacientes portadores de próteses mecânicas. O escape paravalvar, pouco freqüente, associa-se geralmente à fragilidade do anel valvar.
               Os substitutos biológicos se caracterizam por baixa trombogenicidade, baixa turbulência devido ao seu fluxo central, boa hemodinâmica, facilidade de implante e ausência de ruído. As opções atuais de substitutos valvares biológicos vão desde biopróteses com anel de sustentação ou sem anel de sustentação (stentless), até enxertos homólogos frescos ou criopreservados. As biopróteses mais utilizadas são confeccionadas com pericárdio bovino ou com válvulas aórticas porcinas fixadas em glutaraldeído e formaldeído.
               No Instituto do Coração foram implantadas 2.607 biopróteses em 2.259 pacientes no período 1982 a 1995. A patogenia predominante foi a febre reumática: 45,7% dos casos. A mortalidade hospitalar foi de 4,7% para a substituição aórtica; 8,6% para a substituição mitral e 12,8% para a dupla substituição, mitral e aórtica. As taxas linearizadas foram: 1,1% paciente/ano para calcificação; 0,2% para tromboembolismo; 0,1% para escape paravalvar; 0,9% para rotura e 0,5% para endocardite infecciosa. A curva atuarial de sobrevida em 15 anos alcançou 49,1%.
               Após experiências com diferentes materiais e modelos de próteses mecânicas, as próteses de duplo folheto confeccionadas com carvão pirolítico são hoje as mais utilizadas. São próteses de baixo perfil, boa hemodinâmica, porém ainda apresentam certa resistência ao fluxo, necessitando de anticoagulação.
               De 1980 a 1993, 315 próteses mecânicas foram implantadas em 291 pacientes no Instituto do Coração, sendo 45,4% de etiologia reumática e 33,3% aneurismas ou dissecções da aorta ascendente com insuficiência aórtica. A sobrevida atuarial foi de 62,2% em 14 anos para a posição aórtica e 81,3% para a mitral. A complicação mais freqüente foi o tromboembolismo, com uma taxa linearizada de 2,1% pacientes/ano para a posição mitral e 1,1% para a aórtica. A hemorragia relacionada à anticoagulação foi mais freqüente na posição mitral (1,4% paciente/ano) do que na aórtica (0,8%). A endocardite teve uma taxa linearizada de 0,26% paciente/ ano no grupo aórtico e não ocorreu no grupo mitral. O mesmo ocorreu com a hemólise e o escape paravalvar, com taxas de 0,8% no grupo aórtico(6).
               As reoperações constituem grande parte das operações valvares no Instituto do Coração, em vista da ampla utilização de biopróteses em nossos pacientes, as quais têm sua vida útil limitada pela disfunção estrutural. Nos últimos 20 anos, entre 7.544 operações valvares, 22,4% eram reoperações e, no ano de 2001, 31% das operações valvares foram reoperações.
               As reoperações valvares determinam maiores morbidade e mortalidade hospitalares e vários são os fatores de risco. Em análise de 194 reoperações valvares consecutivas no Instituto do Coração entre 1995 e 1999, foram identificados como variáveis preditivas independentes da mortalidade hospitalar: a classe funcional IV, a creatinina sérica superior a 1,5mg/dl e o tempo de circulação extracorpórea maior que 120 minutos.
               O aprimoramento da técnica operatória, o avanço tecnológico da circulação extracorpórea, a utilização de antifibrinolíticos e a melhora nos cuidados intensivos no pós-operatório têm contribuído para sensível melhora nos resultados cirúrgicos dos portadores de valvopatia encaminhados segundo critérios clínicos bem definidos.