<<VOLTAR

    Os avanços dos últimos anos em relação à patogenia da aterosclerose representam até certo ponto uma retomada da teoria de Virchow, que a considerava uma doença inflamatória, ou seja, uma resposta do vaso à injúria(1), acrescentando, porém, consideráveis esclarecimentos em relação aos fatores injuriantes. Mudanças de conceito se intensificaram com o conhecimento de que infarto agudo do miocárdio e angina instável ocorrem, na maioria das vezes, porque a placa de aterosclerose se instabiliza, rompe e se trombosa(2-4). Além disso, verificou-se que as lesões mais vulneráveis são aquelas de placas com maior conteúdo de gordura, sendo aquelas com pouca gordura e maior fibrose mais resistentes, responsáveis talvez por angina estável, mas com menor probabilidade de levar a trombose(5, 6). Uma outra informação adicional importante sobre as características da placa instável é que ela teria mais inflamação do que a estável(7-9). Autores

    Maria de Lourdes Higuchi - Diretora do Laboratório de Patologia do Incor.

    José Antônio F. Ramires - 2Professor Titular de Cardiologia da FM/USP; Diretor Geral do Incor.


             
                Trabalhos recentes realizados no Instituto do Coração (Incor) mostraram ainda outras características morfológicas que distinguem as placas vulneráveis através de estudo comparativo entre dois grupos de segmentos de artérias coronárias em indivíduos que faleceram por infarto agudo do miocárdio(10, 11):

    Grupo A - Placas rotas e trombosadas que causaram o infarto agudo do miocárdio. Elas eram grandes, cheias de gordura e capa fibrosa fina. Um aspecto novo foi que a inflamação por linfócitos estava presente não só na placa, mas mais intensamente na adventícia. Além disso, apresentavam remodelamento positivo, ou seja, dilatação de toda a parede de tal forma que, apesar das placas serem grandes, não obstruíam de forma significativa a luz do vaso.

    Grupo B - Eram representadas por placas de ateroma sem ruptura, dos mesmos indivíduos, que apresentavam porcentagem de obstrução semelhante. Estas placas eram usualmente menores, contendo menor quantidade de gordura e maior de fibrose, além de menor inflamação tanto na placa quanto na adventícia. Geralmente não se associavam com remodelamento positivo, mas, ao contrário, apresentavam remodelamento negativo ou ausência de remodelamento, ou seja, pequenas placas de ateroma podiam causar grande obstrução da luz.

               Classicamente considerava-se que as lesões mais graves do ponto de vista de obstrução eram mais propensas a ter trombose. A partir dos trabalhos de Ambrose et al. em cineangiocoronariografias passou- se a considerar que placas pequenas causando obstrução moderada(12, 13) é que causavam trombose.
               Nossos e outros trabalhos em patologia(14, 15) puderam explicar esta aparente discrepância: as placas instáveis são grandes e gordurosas, porém a cineangiografia detecta apenas a luz(16), e o remodelamento arterial mascara o tamanho da placa. Publicações recentes com ultra-som confirmam que o remodelamento positivo está associado a placas vulneráveis, e o negativo, a placas estáveis(17-20).
               A quebra da capa fibrosa pode ser causada pela ação das metaloproteinases, mais especificamente uma delas, a colagenase(21). A maior parte do estoque destas enzimas está nas células inflamatórias. Lipoproteínas oxidadas têm sido responsabilizadas pela geração desta inflamação(22, 23). Recentemente, tem-se sugerido que vários agentes infecciosos podem estar envolvidos na aterosclerose em si e/ou na ruptura das placas, destacando- se, entre todos, a Chlamydia pneumoniae(24-27). No material de autópsias do Incor, procuramos esta bactéria nas lesões coronarianas. Pelos achados prévios de inflamação adventicial mais intensa do que da placa, procuramos as clamídias também na adventícia.
               Os segmentos instáveis apresentaram maior quantidade de C. pneumoniae do que os demais segmentos, principalmente na adventícia(28, 29). Pela microscopia eletrônica foi possível reconhecer os corpos elementares (formas arredondadas de material eletrodenso, circundadas por dupla membrana e forma de pêra) destas bactérias. O número médio de linfócitos B se correlacionou positivamente com a quantidade de células positivas para C. pneumoniae na adventícia, sugerindo uma relação de causa e efeito (r = 0,65).
               Mais surpreendente, porém, foi o achado concomitante de Mycoplasma pneumoniae nas mesmas( 30, 31). À microscopia eletrônica foram vistas estruturas pequenas, de formato tendendo a oval ou filiformes, com granulação do tipo RNA ou DNA, envolvidas por uma única membrana, característica de micoplasma. A hibridização in situ e a imunoistoquímica confirmaram tratar-se de Mycoplasma pneumoniae. Os micoplasmas são as únicas bactérias com colesterol formando sua membrana externa(32, 33). Têm sido considerados parasitas típicos de epitélios (respiratório e trato geniturinário) que dificilmente invadem o corpo humano. Em condições patológicas como Aids, os micoplasmas se tornariam mais invasivos(34).
               Estudando os segmentos dos grupos A e B conjuntamente, encontraram-se correlações estatisticamente significantes entre quantidade de micoplasmas e quantidade de gordura na placa (r = 0,69), bem como com a área seccional do vaso (r = 0,65), sugerindo que estas bactérias participam ativamente no remodelamento positivo da vaso.
               Assim, micoplasmas estão presentes nos ateromas, mas a associação com clamídias parece levar a aumento de virulência de ambos os agentes infecciosos, aumentando a inflamação e o enfraquecimento do vaso, podendo estar relacionados com a ruptura da placa de ateroma. A hipótese de que agentes infecciosos estão direta ou indiretamente envolvidos na instabilização da placa vem ganhando cada vez mais reforços(35).


    Figura. Demonstração morfológica de agentes infecciosos na placa aterosclerótica rota associada a infarto agudo do miocárdio: A – numerosos macrófagos e linfócitos apresentando positividade para antígenos da Chlamydia pneumoniae; B – célula no sangue infectada por C. pneumoniae pela imunofluorescência, ao lado de hemácias em observação ao microscópio confocal a laser; C – micrografia eletrônica demonstrando numerosas massas eletrodensas com morfologia compatível com corpos elementares de C. pneumoniae; D – estrutura compatível com micoplasma (seta cheia) penetrando célula endotelial, a qual mostra tumefação e presença de formas irregulares de membranas com conteúdo vazio de origem não-esclarecida (seta vazia)

    Nota do editor

              Os três traçados subseqüentes foram gentilmente cedidos e analisados pelo dr. Eduardo B. Saad, chief fellow in pacing and electrophysiology da Cleveland Clinic Foundation.

    Traçado nº 1

              Trata-se de um jovem de 32 anos que foi atendido com dor precordial atípica. Estava monitorizado quando apresentou um quadro sincopal. O eletrocardiograma (traçado contínuo) revela inicialmente um ritmo sinusal; subseqüentemente ocorre bradicardia progressiva, evoluindo para ritmo juncional progressivamente mais lento, terminando, em assistolia, por 30 segundos, e recuperando-se espontaneamente e sem seqüelas a seguir.

    Comentários

              Trata-se de um paciente jovem com coração estruturalmente normal e com história de episódios présincopais vagais em situações típicas, como, por exemplo, coleta de sangue. Os achados foram reproduzidos num teste de inclinação, que mostrou resposta cardioinibitória e vasodepressora. Como se trata do primeiro episódio de síncope, o tratamento deve ser conservador, farmacológico, à base de betabloqueadores, e o treinamento, em situações posturais. O implante de marca-passo, especialmente quando existe um elemento vasodepressor associado, não mostra benefícios adicionais em relação ao tratamento clínico: não se mostrou benéfico em reduzir a freqüência de síncope, limitando-se a aumentar o período sem síncope. Esta terapêutica estará indicada nos casos de síncopes recorrentes. É interessante citar que estes conceitos são válidos mesmo para as síncopes com período de assistolia prolongado, como o caso presente.

    Traçado nº 2

              Trata-se de uma taquicardia com QRS alargado. Os complexos QRS têm cerca de 200 milissegundos de duração. O padrão eletrocardiográfico é o de bloqueio do ramo direito atípico, com desvio do eixo elétrico para o quadrante superior direito. O diagnóstico diferencial é entre uma taquicardia supraventricular com condução aberrante, uma taquicardia ventricular, ou uma taquicardia por via anômala, com pré-excitação. A existência de um padrão predominantemente negativo em V5 V6 afasta uma taquicardia por via anômala, porque mostra que o foco da taquicardia é mais inferiormente situado, apical, enquanto que na taquicardia por via anômala o foco está situado junto à base do coração. A presença de R puro em V1, associado ao intervalo RS em V4 acima de 100 milissegundos, e o padrão QS em V6 estabelecem o diagnóstico de taquicardia ventricular. A presença de padrão de ondas Q alargadas em D2 D3 e AVF configurando a presença de infarto do miocárdio é outro elemento de convicção para taquicardia ventricular. A morfologia das derivações precordiais mostra claramente que esta taquicardia se origina da parede inferior.

    Traçado nº 3

              Trata-se de um paciente com 60 anos. O traçado mostra, na sua parte inicial, um flutter atrial com bloqueio AV 2:1 e bloqueio completo de ramo direito do feixe de His. O quinto batimento é uma extra-sístole ventricular à qual se segue um agrupamento dos complexos QRS de 2 para 2, permitindo, pois, uma melhor análise com visualização das ondas P, configurando agora um flutter atrial com bloqueio AV 3:2, com fenômeno de Wenckebach. A melhora da condução A-V após a extra-sístole provavelmente se deve ao fato de ela reduzir ou eliminar uma condução oculta previamente existente.