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    Local: residência do prof. Décourt
    Data: 28 de outubro de 2002
    Entrevistador: prof. Edson A. Saad

                 Luiz Décourt, professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP, é um dos grandes, senão o maior, dos médicos e professores deste país, que influenciou e formou dezenas de gerações e que constitui um repositório de grandes virtudes, razões pelas quais eu o considero um dos marcos azuis no meu caminho.

    Edson Saad - Professor, como foi a sua infância e a juventude até a universidade?
    Prof. Luiz Décourt - Bom, mais a parte talvez de ginásio... Veja bem, eu costumo dividir a minha formação intelectual em três grandes períodos, excluindo o curso primário, que é para aprender a ler: o curso secundário, o curso superior e a faculdade de medicina. No secundário eu cursei um ginásio que era o mais famoso do Brasil naquela época, chamado Ginásio Culto à Ciência de Campinas, onde o meu pai era professor de História Natural. Então, lá eu aprendi uma série de matérias que hoje quase não constam do currículo. Vou dar para você dois exemplos. Eu estive na Europa fazendo conferências.
    Estive na Itália e na França (meus avós eram franceses), mas, na Itália, arranjei um rapaz que me ajudasse a falar bem o italiano, o que me foi fácil porque eu tinha tido dois anos de italiano no ginásio. Quando me formei, a ciência médica era essencialmente européia e, entre a ciência médica, uma grande parte, inclusive o estudo anatomopatológico, estava na Alemanha. Então eu precisava ler um pouco de alemão. Estive dois anos na Escola Alemã, na Olindenstrafe (Hulingham), mas tive uma grande vantagem em relação aos meus colegas, porque eu tinha tido também curso de alemão durante o ginásio. Então o meu curso de ginásio, Edson, foi uma das épocas mais felizes da minha vida, onde aprendi um grande número de matérias que foram de grande auxílio. Aprendi mecânica e astronomia, álgebra, geometria e trigonometria. Um curso secundário excelente. Em segundo lugar, entrando na faculdade de medicina, uma faculdade que já era respeitada pela categoria dos professores; não quero dizer que todos fossem excelentes, mas a grande maioria era composta por professores competentes, respeitados e respeitosos, onde aprendi não apenas a medicina técnica, mas também o modo de tratar os doentes, porque o curso prático foi dado na Santa Casa de Misericórdia, e lá as auxiliares dos médicos eram freiras, e não enfermeiras, então havia uma assistência muito humana aos doentes, até religiosa, se eu posso assim dizer. Este curso que fiz, com a parte do curso teórico na faculdade de medicina, que era excepcional e ainda continua sendo, e um curso prático bem-feito na Santa Casa de Misericórdia, onde eu guardei não apenas a técnica, mas também o modo humano de exercer a medicina, marcaram meu espírito.

    Edson Saad - Quais qualidades o senhor julga que devam ornar a pessoa do médico?
    Prof. Luiz Décourt - Eu faria uma pequena distinção entre o médico clínico e o médico professor universitário.
    Ambos precisam ter uma visão muito grande do ser humano. Eu já fiz várias vezes conferências sobre o estudo das humanidades na carreira científica, e, evidentemente, é preciso, em primeiro lugar, um conhecimento total da matéria e, em segundo lugar, que se respeite o trabalho dos outros.
    Não importa a origem, se foi de uma grande entidade ou de uma pequena entidade. Em terceiro lugar, o médico deve atender à necessidade da pátria, numa revolução, numa guerra, numa revolta, numa epidemia e, em último lugar, mas eu diria que é o primeiro lugar, sendo o último apenas na parte geográfica do texto, o trato do médico com o doente. Eu tenho um credo em que ressalto as qualidades do médico para amparar os que não têm amparo.
    E termino dizendo que o médico deve servir aos doentes, e nunca se servir dos doentes.

    Credo

               Creio na medicina que é ato contínuo de aprimoramento; que evita, na sucessão dos dias, o aniquilamento de um patrimônio cultural que é a própria razão de seu mister; que não cessa de buscar, nos homens e nos livros, a forma correta de se exercer.
    Na medicina que exige o fato atual, mas não o recebe com passividade; que analisa o dado novo pela segurança das medidas que o forneceram e através da experiência conseguida.
    Medicina que defende, mas não reverencia a própria opinião; e que aceita a informação, se adequada, provenha ela de autoridades consagradas ou de humildes trabalhadores.
    Na medicina que procura não apenas o combate à doença e sua prevenção, mas também o avanço do conhecimento científico; que investiga, compara, discute e conclui. Não tanto para a exaltação do próprio prestígio, como para o progresso do homem, porque sabe que a recompensa do investigador não é a obtenção de prêmio, mas o privilégio de ter trazido seu grão de areia ou seu tijolo ao sempre renovado edifício da verdade científica.
              Creio na medicina que é ato de resposta às necessidades da pátria. Medicina lúcida e vigilante, atenta aos problemas nacionais e apta para intervir. Medicina responsável e solucionadora, que não aguarda o chamado da coletividade, mas procura atuar antes desse apelo.
    Nunca deformada por estreita visão do local em prejuízo do universal; nunca amesquinhada por demagogia ou por interesses pessoais; nunca aviltada por ideologias políticas corruptas e corruptoras.
              Creio na medicina que, sendo técnica e conhecimento, é também ato de solidariedade e de afeto; que é dádiva não apenas de ciência, mas ainda de tempo e de compreensão; que sabe ouvir com interesse, transmitindo ao enfermo a segurança de que sua narração é recebida como o fato mais importante desse momento. Medicina que é amparo para os que não têm amparo; que é certeza de apoio dentro da desorientação, do pânico ou da revolta que a doença traz.
    Na medicina que serve aos doentes e nunca se serve deles.

    Luiz V. Décourt
    (Agosto de 1970)

    Edson Saad - Qual é o papel que deve ter a cultura humanística na formação dos médicos?
    Prof. Luiz Décourt - Eu não tenho dúvida de que a formação humanística é essencial para os médicos. Em primeiro lugar, dá aos médicos uma cultura que faz com que possam aproveitar os trabalhos que irão ler.
    Uma cultura humanística traz ao médico aquela parte de visão integral não apenas do homem, mas do mundo e da época que o mundo está atravessando. Então, fala-se muito hoje em sociologia, e a sociologia é uma parte da vida em comum que vivemos; mas a formação do médico como deve ser feita consta, em parte, de uma grande função sociológica, em que ele deve estar consciente do seu papel na sociedade; combatendo as doenças, sim, fazendo a profilaxia, sim, fazendo as vacinas, sim, mas essencialmente transmitindo aos seus alunos o respeito integral à pessoa do doente. Por isso eu considero, Edson, a anamnese uma parte importante do exame clínico, porque nela fico conhecendo a personalidade do indivíduo e atinjo mais facilmente a intimidade deste indivíduo, que é o cliente e que o médico deve atingir.

    Edson Saad - Um assunto difícil hoje: a medicina se tornou muito materialista, as dificuldades de sobrevivência dos médicos são cada vez maiores, acho que vivemos uma sociedade profundamente egoísta. Então, eu gostaria que o senhor falasse sobre exercício profissional, educação continuada e finanças no mundo atual.
    Prof. Luiz Décourt - Veja bem, Saad, um médico vive hoje, como outros profissionais, uma vida onde as realizações são difíceis, pelo próprio meio em que ele vive. Então, economicamente perturbado, politicamente perturbado e até, quem sabe, familiarmente perturbado. Mas há um ponto, Edson, em que eu não transijo: em primeiro lugar, para o médico, está a figura do paciente, que jamais pode ser desrespeitada. Ele deve trazer o máximo do seu conhecimento para o doente, mas de uma forma humana. Há um elemento importante hoje em dia, nos jovens, de ver a parte técnica com predomínio sobre a parte humana. Houve até um médico italiano que esteve aqui (não me recordo o nome dele) e que disse que "não sabia por que falava-se tanto em humanismo; se a pessoa tem uma doença, eu dou um remédio, ela sara e está acabado", uma forma completamente absurda de encarar a medicina. É como se a medicina fosse o conserto de um carro, que, se está com o pneu furado, troca-se o pneu, não vendo, portanto, a tremenda, a utilíssima tarefa do médico de proteger o seu doente também psicologicamente. O médico é essencialmente, para o seu doente, um provedor - é o que está no meu juízo. Então, ele deve ser não apenas um curador de doenças, mas um orientador na vida social. Isso faz parte do médico.

    Edson Saad - Uma outra pergunta, professor: qual o papel da tecnologia atual e qual a sua influência no exercício da medicina?
    Prof. Luiz Décourt - A tecnologia é fundamental. Se nós não déssemos aos nossos doentes o que a técnica nos fornece hoje, estaríamos atrasados 300 anos. O mal que eu vejo hoje, Saad, não é que o médico não empregue esta técnica. Ele em geral a conhece, sabe empregá-la, mas ele como que transforma a medicina em fórmulas, em máquinas. E eu sempre digo: a máquina atual é essencial no exercício da medicina, mas, veja bem, é a máquina que complementa o homem, e não o homem que complementa a máquina. Então, a máquina existe para auxiliar o médico. Ele deve ser o fac totum, aquele que se utiliza da máquina quando for preciso, compreende? O aprendizado da técnica é fundamental, porém o aprendizado técnico jamais poderá ser a única virtude do médico.

    Edson Saad - O senhor foi um grande líder, influenciou gerações inteiras, formou grandes médicos e grandes professores. Quais são as regras para isto?
    Luiz Décourt - Você agora falou uma coisa que eu sou obrigado a aceitar. Realmente, nos meus 30 anos (eu me formei há mais tempo) dedicados à cardiologia, eu formei centenas de estagiários. Nestes 30 anos, eu tive 897 estagiários que fizeram estágio comigo. Procurei fazer com que eles conhecessem a medicina, a aplicação da medicina e o respeito à resposta do doente à medicina. Em primeiro lugar está o homem, está a sua palavra, está o seu conselho, está o seu apoio, está a sua vigilância, está a sua norma de conduta, que deve ser exemplo. Então, uma parte que está dentro da sua interrogação é como se deve comportar o médico na sua sociedade, e eu acho que o médico é um exemplo. Se o médico não tem moral é um mau exemplo, mais do que outras profissões. Então, ele deve ser não apenas um excelente auxiliar para o seu doente, mas deve ser também um digno, um digníssimo exemplo do elemento pensante e atuante na sociedade com disciplina, com entusiasmo sempre, ajudando, jamais perseguindo.

    Edson Saad - Muito bem, professor, muito obrigado!