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Enquanto a medicina foca principalmente aqueles que buscam assistência, em geral, de forma espontânea, a saúde pública olha para o conjunto dos indivíduos: os doentes (que buscam, não buscam ou não têm acesso aos serviços médicos) e também aqueles (ainda) não-doentes, ou não identificados como tal.
O impacto das doenças cardiovasculares (DCV) é muito variado comparando-se populações e países diferentes. Estatísticas recentes disponíveis (Tabela 1) permitem cotejar a importância das DCV e, mais especificamente, da doença arterial coronariana (DAC) e da doença cerebrovascular (AVC) com a mortalidade por todas as causas no mundo, nas Américas, nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e no Brasil. ![]() Como se pode ver na Tabela 2, há grande variação regional na mortalidade por estas causas nas distintas regiões do Brasil. Em parte, esta diferença deve estar associada à diferença na qualidade dos registros (e possivelmente no acesso e qualidade da assistência médica), como pode ser inferido pela variação na proporção de óbitos atribuídos a causas mal definidas entre as regiões. A Região Sul tem a menor proporção de óbitos por causas mal definidas (6,5%) e a maior ocorrência relativa de DAC (10,7% do total de óbitos em 1999). Já as Regiões Norte e Nordeste têm as maiores proporções de óbitos por causas mal definidas (22,6% e 29%, respectivamente) e as menores ocorrências relativas de DAC (4,1% e 4,8% dos óbitos em 1999, respectivamente). ![]() ![]() Como a ocorrência de DCV tende a aumentar coma idade (Figura 2), para que o número total de mortes por DCV numa população seja alto é preciso que um número suficiente de pessoas sobrevivam à infância e à fase de adulto-jovem relativamente saudável, para que possam então morrer por esta causa. Como mostra a Figura 3, nos EUA, 67,6% das mortes atribuídas à DCV ocorreram após os 75 anos de idade. No Brasil, apenas 38,1% (entre 40,1% na Região Sul e 31,4% na Região Centro-Oeste). A maior proporção de mais jovens (< 65 anos) entre os mortos por DCV no Brasil (35,9%) do que nos EUA (15,2%) reflete este déficit comparativo de idosos no Brasil (Figura 4). A distribuição das mortes por sexo também varia de uma população para outra, conforme se pode ver na Tabela 3, refletindo diferenças na estrutura etária, bem como exposições diferentes aos diversos fatores determinantes da morbidade. Morbidade por doenças Cardiovasculares
Como a mortalidade expressa apenas parcialmente o impacto das doenças, nos últimos anos tem-se utilizado cada vez mais uma outra unidade como indicadora: os anos ajustados de incapacidade e morte precoce perdidos cada ano, DALYs em inglês (disability adjusted lost years).
A mortalidade por DCV nos EUA (onde sua tendência temporal tem sido bem documentada) (MMWR 2001) aumentou ao longo do século XX, até 1968, quando um declínio ainda não adequadamente explicado teve início. A ascensão foi atribuída à emergência da doença arterial coronária como causa relevante de morte, retrospectivamente localizada ao redor de 1925 (Stallones). Como podemos ver na Figura 5, a mortalidade por doença cerebrovascular teria paradoxalmente declinado durante todo o período de observação. No entanto, estudos recentes comparando a evolução temporal na relação trombose x hemorragia em necropsias sugerem tendências temporais divergentes para estas duas formas de apresentação. A mortalidade secundária à trombose teria acompanhado a curva epidêmica da DAC, sendo a tendência predominante de declínio decorrente da queda na mortalidade por DCBV hemorrágica (Lawlor DA et al., 2002). ![]() Tendências similares de ascensão e queda na mortalidade por doença coronária foram documentadas em vários países ocidentais, embora com alguma defasagem (Le Fanu). As taxas mais elevadas hoje ocorrem em países do leste europeu, aparentemente com taxas de mortalidade por DCV ainda ascendentes (Le Fanu). No Brasil, a mortalidade por DCV manteve-se relativamente estável em valores elevados nos anos 1970 e foi declinante no período mais recente (Lotuffo et al. 1996; Mansur AP, 2002). Este declínio foi documentado tanto para a DAC como para o AVC. A ascensão da mortalidade por DAC foi atribuída, no pós-guerra, à degeneração decorrente do envelhecimento populacional e de estilos de vida (sedentarismo, estresse/HAS) e padrões de consumo (fumo, dieta rica em gorduras), que se expandiam em uma população mais urbana e afluente. Nas décadas de 1960 e 1970, três fatores de risco (hoje denominados clássicos) eram considerados determinantes para a ocorrência da DAC: a hipercolesterolemia (secundária ao consumo de gorduras saturadas), o fumo e a HAS. ![]() Assim, num período de 50 anos (do pós-guerra até a virada do século) foi possível observar não somente uma epidemia de DCV mas também uma revolução na concepção fisiopatogênica da aterosclerose coronária, embora as concepções predominantes não tenham conseguido explicar adequadamente as variações temporais e geográficas na mortalidade ao longo do século (Azambuja e Duncan, 2002). Fatores de risco
O conhecimento dos fatores de risco é de importância fundamental para melhorar o controle clínico e epidemiológico destes grupos de doenças. De forma semelhante à doença arterial coronária, os fatores de risco para o acidente vascular cerebral (AVC) podem ser divididos em modificáveis e não-modificáveis.
Estes fatores de risco são importantes para identificar indivíduos com potencial de alto risco e que se beneficiarão de intervenções preventivas ou terapêuticas rigorosas sobre os fatores de risco modificáveis.
A idade é um importante fator de risco de DCV. O risco de AVC duplica após os 55 anos (AHA). Em Salvador, o AVC é 340 vezes mais incidente entre pessoas acima dos 65 anos em comparação ao grupo etário entre 15 e 24 anos (21).
O AVC é mais prevalente e incidente em homens que em mulheres (9) , exceto entre 35 e 44 anos e acima dos 85 anos (9) . Contudo, a mortalidade relacionada ao AVC é maior em mulheres. Nos Estados Unidos, uma em cada seis mulheres morrerá por AVC, comparada com uma em cada 25 que morrerá de câncer de mama (9). O uso de contraceptivos orais e apenas uma gestação contribuem para o aumento do risco de AVC (9).
A incidência e a mortalidade por AVC é maior em negros. No estudo ARIC (Atherosclerosis Risk in Communities), a incidência de AVC foi 38% maior em negros do que em brancos (23). A alta prevalência de hipertensão, de obesidade e de diabetes entre negros pode contribuir para estas elevadas taxas de incidência e mortalidade por AVC. Estudos epidemiológicos demonstraram que hispânicos, japoneses e chineses também apresentam alta incidência de AVC (9).
Raça e etniaHistória materna ou paterna de AVC está relacionada com aumento do risco. Esse aumento pode refletir aspectos genéticos propriamente ditos, mas também aspectos ambientais ligados aos hábitos de vida familiar (AHA). Contudo, a incidência e prevalência de AVC é maior em gêmeos monozigóticos que nos dizigóticos, destacando a influência do fator genético (24).
A relação entre vários fatores de risco e AVC está bem estabelecida. A HA é o fator de risco mais importante para AVC isquêmico ou hemorrágico. Existe uma relação direta e contínua entre o aumento da pressão arterial sistólica e/ou diastólica e o risco de AVC (9). Nos idosos, pressão arterial sistólica > 160mmHg, mesmo isolada, é importante fator de risco de AVC (9). No Brasil, a exemplo de outros países ocidentais, a HA é o maior fator de risco para AVC, presente em 85% dos pacientes (25). O controle da pressão arterial contribui para a prevenção do AVC (9) . Vários estudos demonstram que o tratamento com betabloqueador ou diurético é efetivo na prevenção do AVC (26) . No estudo Shep (The Systolic Hypertension in Elderly Program) houve uma redução de 36% na incidência de AVC com o uso de atenolol ou clortalidona (27).
Pacientes diabéticos, insulinodependentes ou não, apresentam maior usceptibilidade para aterosclerose. Estudos de caso-controle e estudos epidemiológicos prospectivos confirmam a importância do diabetes como fator de risco de AVC, com risco relativo variando entre 1,8 e 6 (9) . Para homens, no Honolulu Heart Program, o risco de AVCI foi duas vezes maior em diabéticos, independente de outros fatores associados (28) . A intolerância à glicose, per se, já confere aumento do risco de AVCI (29). ![]() A HA é muito freqüente em diabéticos, com prevalência de 30% nos insulinodependentes e de 40%-60% nos não-insulinodependentes, o que torna difícil a dissociação da magnitude desses dois fatores de risco na morbimortalidade por AVC. No subgrupo de 3.577 diabéticos, no estudo Hope (Heart Outcome Prevention Evaluation), o risco de AVC diminuiu 33% no grupo em uso de ramipril, mesmo quando o decréscimo absoluto dos níveis pressóricos foi pequeno (30). Controle glicêmico inadequado e proteinúria também conferem maior risco de AVCI em diabéticos (31). Dislipidemia
Estudos recentes sugerem que hipercolesterolemia e HDL-colesterol diminuído podem aumentar o risco de AVCI, embora a relação de risco não seja tão significativa como aquela com a doença coronariana (9). Por outro lado, os benefícios na prevenção do AVCI em pacientes coronarianos, em uso de estatinas, têm sido apoiados por várias metanálises (32, 33) . Resta, porém, esclarecer se o mecanismo dessa proteção está mais relacionado ao efeito hipolipemiante das estatinas ou aos seus efeitos benéficos sobre o endotélio, com maior estabilidade das placas ateroscleróticas, e às suas propriedades antitrombóticas e antiinflamatórias (Goldstein). Vale salientar que a redução do risco esteve associada com redução dos níveis lipídicos mesmo nos indivíduos com perfil lipídico considerado normal 34). Evidências patológicas desses benefícios têm sido demonstradas em estudos recentes, indicando relação inversa entre níveis lipídicos e grau de aterosclerose carotídea extracraniana (35).
O tabagismo ativo têm sido considerado um fator de risco importante para AVCI. Os efeitos fisiopatológicos do tabaco afetam diretamente a função endotelial, são pró-trombóticos e diminuem os níveis de HDL-c. Metanálise de 22 estudos demonstrou o dobro de risco de AVCI nos fumantes quando comparados aos não-fumantes (36). Dados do Estudo de Framingham também confirmam um aumento de risco de AVCI de 1,8 nos fumantes, após ajustes para outros fatores de risco (37) . Também já foi demonstrado que tabagistas passivos, independente do sexo, apresentam aumento de 1,8 no risco de desenvolver AVCI (38).
O impacto de alguns fatores de risco, estimado em DALYs (unidade que pretende medir os anos ajustados de vida perdidos por morte precoce e incapacidade), pode ser examinado na Tabela 6, que apresenta grandes grupos de risco. O primeiro corresponde à desnutrição materna e infantil. O segundo grande grupo também se relaciona com desvios nutricionais e sedentarismo, entre os quais podem ser reconhecidos diversos fatores comprometidos com o tema deste texto: pressão arterial, hipercolesterolemia, sobrepeso, falta de frutas e verduras na alimentação e sedentarismo. O terceiro - exposição a substâncias aditivas - contém ao menos dois fatores relacionados com o tema deste artigo: tabagismo e alcoolismo.
Na busca da causalidade das doenças e das causas para poder intervir mais precocemente e com maior chance de sucesso, a medicina cada vez mais se antecipa ao limiar clínico, e busca as primeiras manifestações anatomopatológicas e biológicas capazes de predizer o risco futuro.
A aterosclerose, causa mais comum de doença cerebrovascular (AVC) (70% ou mais dos acidentes vasculares cerebrais), tem sua patogênese inicial, semelhante à doença arterial coronária, numa lesão do endotélio vascular, caminho para um processo inflamatório crônico pela ação de citocinas, peróxidos ou outros estímulos associados à injúria hipóxica, com liberação de moléculas de adesão do tipo 1, intercelular (ICAM-1) e da célula vascular (VCAM-1), as quais estimulam receptores celulares que favorecem a aterogênese. A turbulência do fluxo sanguíneo também contribui para a resposta dos receptores celulares de moléculas de adesão, justificando, assim, a localização preferencial de placas ateroscleróticas nas bifurcações dos vasos (2, 3). Os locais mais comumente acometidos são a bifurcação da carótida interna, a origem da artéria cerebral média e qualquer uma das extremidades da artéria basilar. ![]() O AVC se manifesta por déficit neurológico focal, de origem isquêmica e caráter transitório (isquemia cerebral transitória, ICT) ou definitivo (acidente vascular cerebral isquêmico, AVCI). A sua patogênese resulta de trombose intravascular secundária à ruptura de placas ateroscleróticas instáveis. O infarto cerebral constitui a patologia básica do AVCI. Este pode ocorrer no local da trombose ou à distância, por embolismo de material trombótico de artérias cerebrais de maior calibre ou do sistema carótido-vertebral e aorta ascendente. A DCBV, quando associada à hipertensão, pode combinar à sua fisiopatologia acidentes trombóticos e hemorrágicos. A viabilidade funcional da área cerebral isquêmica depende, basicamente, da grandeza da circulação colateral e da duração, magnitude e rapidez de instalação da isquemia, o que se reflete em quadros clínicos de apresentação, intensidade e evolução variáveis. Epidemiologia da doença Cerebrovascular
No Brasil, nos últimos 40 anos, a mortalidade por acidente vascular cerebral (AVC) foi maior de que por doença coronária, situação inversa à de outros países ocidentais, com exceção de Portugal, com coeficientes próximos aos nossos (18) . No Brasil, a mortalidade por AVC também apresenta variação regional. De 1979 a 1996, a mortalidade declinou no Sul e Sudeste, e aumentou no Centro-Oeste, exceto dos 30 aos 39 anos (19). O Nordeste apresentou o menor de risco de morte, exceto dos 40 aos 59 anos, quando aumentou (19). O Norte mostrou tendência à estabilidade. Vale ressaltar que a análise dessas tendências foi prejudicada pela grande proporção de causas mal definidas de morte. ![]() O AVC é a terceira causa de morte nos Estados Unidos, com 700 mil casos novos por ano e 4,4 milhões de sobreviventes (8) , representando importante problema econômico, com gasto de 51 bilhões de dólares no ano 1999 (9) . No Brasil, entre 1980 e 1995, um terço dos óbitos por doenças circulatórias decorreu de AVC, com 49.676 a 73.899 hospitalizações por ano entre 1984 e 1997 (10) . Os anos de vida produtiva perdidos por mortalidade entre 20 e 59 anos e o pagamento de pensões, em média 13 anos antes do esperado (12) , constituem outro importante aspecto socioeconômico do AVC no cenário nacional (11). A tendência epidemiológica da mortalidade por AVC foi decrescente na maioria dos países desenvolvidos, mas a expectativa projetada entre os anos de 1990 e 2020 é ainda de crescimento, embora num percentual bem menor que o observado e esperado nos países em desenvolvimento, nos quais a tendência tem sido crescente. Na América Latina, o crescimento esperado é de 138% para as mulheres e de 145% para os homens, em comparação a 28% e 56%, respectivamente, para os países desenvolvidos (Yussuf ). Aspecto epidemiológico importante é a semelhança das tendências de mortalidade por infarto cerebral e cardiopatia isquêmica ao longo do século XX, sugerindo uma base etiopatogênica comum (Lawlor e Yussuf ). Nos Estados Unidos, além das diferenças observadas para o sexo, com mortalidade masculina 25% maior que a feminina, e para raça, com mortalidade em negros 40% maior que em brancos, há também uma importante variação geográfica. Assim, observa-se que na região conhecida como stroke belt (cinturão do AVC), que inclui os estados de Carolina do Norte e do Sul, Alabama, Mississippi, Arkansas, Tenessee e Louisiana, onde a concentração de negros é grande, a mortalidade é 40% maior que no restante do país (Howard-Stroke, 2001). É necessário discutir a importância clinicoepidemiológica dessas evidências, a fim de equacionar a influência das reduções na incidência e na letalidade sobre as reduções das taxas de mortalidade. Assim, no estudo Monica, dois terços da redução na mortalidade foram secundários à diminuição da incidência, por melhor controle dos fatores de risco, e um terço, por diminuição da letalidade (22). No Brasil, a avaliação e a confiabilidade desses dados sofrem grande influência da qualidade dos registros de ocorrência de casos e de óbitos, em algumas regiões, além das diferenças étnicas, socioeconômicas e culturais, sendo difícil uma avaliação real das nossas perspectivas. Considerações finais
A epidemiologia das doenças arterial coronária e cerebrovascular torna evidente a importância da aterosclerose como causa de morbimortalidade cardiovascular em todo o mundo e também em nosso país. Diferenças em estratos populacionais distintos, inclusive em nosso meio, encontram explicação em variáveis sociodemográficas, exposição diferenciada a fatores de risco comuns, muitos deles controláveis. Populações com níveis de mpacto menores ou se encontram em fase precoce de transição, na qual se pode ainda interferir para reverter a tendência, ou já estão na fase descendente desejável, e servem como demonstração da efetividade da promoção da saúde, dentro de sua ampla concepção. |