A miocardite se caracteriza pela presença de resposta inflamatória, freqüentemente em decorrência de uma agressão infecciosa. Em conjunto com a miocardite, o processo inflamatório pode vir a acometer outras estruturas do coração, ocasionando pericardite ou vasculite coronariana. Autores

    Marcelo Westerlund Montera - Professor de pós-gaduação em Cardiologia da Santa Casa do Rio de Janeiro; Professor de Cardiologia da Universidade Gama Filho (UGF); Doutorando em Cardiologia pela USP; Médico do Hospital Pró-Cardíaco.
    Fábio Fernandes - Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP.

              O agente agressor mais freqüente é o infeccioso, mas a miocardite pode também ser secundária a agressões pelo sistema imunológico, como na miocardite periparto, por radioterapia ou quimioterapia. Entre os agentes infecciosos, o mais comum é o viral, principalmente os enterovírus. Entre estes, o coxsackie do tipo B é o mais comum, sendo responsável por cerca de 50% dos casos.
              A miocardite secundária a agressão viral tem bem definidas três fases distintas de agressão e resposta inflamatória (Figura 1). A primeira fase se caracteriza pela presença de viremia com infecção viral miocárdica. Nesta fase temos a invasão dos miócitos pelo vírus, com agressão direta do vírus sobre o miócito, e a ativação de um sistema de defesa local, mediado principalmente pelos linfócitos teciduais locais, os chamados T killers, que liberam uma série de mediadores, entre eles a perforina, que tem como objetivo destruir o vírus e que acaba também lesando o miócito. Associada a estes mediadores, temos a liberação de citocinas, como interferon gama e interleucinas 1 e 6, que amplificam a resposta inflamatória de defesa. Esta fase 1 se caracteriza por viremia com ativação imune celular-humoral local. Ela tem um pico de atividade entre o quarto e o sétimo dia. Na fase 2, temos o desenvolvimento da resposta imune celular, em função do desenvolvimento de receptores de histocompatibilidade de superfície nos miócitos, pela exposição na superfície da membrana do miócito dos aminoácidos virais produzidos no interior do miócito. Estes receptores estimulam a resposta inflamatória mediada pelo linfócito T, que terá uma atuação direta e através de mediadores inflamatórios que promovem a agressão do miócito. Esta agressão terá repercussão funcional, com redução dos beta-receptores adrenérgicos, disfunção dos canais de cálcio voltagem-dependente, desacoplamento da ativação da proteína G estimuladora e alterações na cadeia respiratória que induzem disfunção contrátil. Outra fase da agressão é estrutural, com miocitólise e ativação da cadeia enzimática da apoptose. A fase 2 tem o seu pico entre a segunda e a quarta semana apó a infecção viral do miocárdio. A fase 3 pode apresentar três modelos diferenciados de evolução. Podemos ter a progressão da agressão, em decorrência de uma resposta imune-humoral mediada pela permanência do RNA viral no miocárdio, cadeia ganglionar, baço, ou por reinfecção, que induz a ativação de complexos de histocompatibilidade com agressão miocitária permanente, induzindo cardiomiopatia dilatada com disfunção progressiva. Podemos ter o desenvolvimento de uma resposta reparativa, com proliferação de colágeno e fibrose, se manifestando com remodelagem ventricular e cardiomiopatia dilatada estável. Ou podemos ter a regressão do processo inflamatório, com recuperação da função ventricular ou manutenção de leve disfunção ventricular. A fase 3 é a que geralmente nos chega ao ambulatório, onde o paciente refere uma história de infecção há cerca de dois ou três meses. O seu pico de atividade é em torno do segundo ao terceiro mês.
              É de fundamental importância clínica tentar estabelecer em que fase evolutiva da doença se encontra o seu paciente, pois isto terá implicação no que se deve esperar dos métodos diagnósticos (Figura 2), assim como no estabelecimento da estratégia terapêutica (Figura 3).

    Diagnóstico

              O diagnóstico baseia-se na presença de sinais e sintomas, além do alto grau de suspeita clínica e confirmação pelos métodos complementares.

    Quadro clínico

              A apresentação clínica é variável (Figura 4), podendo ser assintomática ou exteriorizar-se por arritmias freqüentes, morte súbita, quadro clínico infeccioso, disfunção ventricular assintomática, disfunção ventricular sintomática e forma fulminante de miocardite.
              Setenta por cento das disfunções ventriculares assintomáticas ou com poucos sintomas regridem sem deixar seqüelas. Das formas com maior disfunção ventricular, cerca de 25% regridem, 50% estabilizam e 25% evoluem progressivamente com piora da função ventricular.
              Os sintomas prodrômicos variam desde febre com presença de infecções não-específicas do trato respiratório ou gastroenterite até quadros mais específicos como síndrome coxsackievirus (rash, pleurodinia, linfadenite, orquite, hepatite ou meningite). É evidente que a valorização desta fase prodrômica geralmente se dá de forma retrospectiva, pois a incidência de quadros virais é muita elevada, principalmente em épocas de surtos. Após estes surtos, a ocorrência de miocardite é mais elevada que em épocas nas quais eles não ocorrem.
              O clínico deve levantar a hipótese de miocardite viral quando estiver presente história de doença viral prévia. Outros possíveis dados diagnósticos seriam: 1) presença de taquicardia desproporcional a quadro febril; 2) ausência de doença cardíaca preexistente; 3) aparecimento súbito de arritmias ou distúrbio de condução; 4) presença de aumento da área cardíaca ou sintomas de insuficiência cardíaca congestiva sem causa aparente; 5) quadro de dor torácica e insuficiência cardíaca em pacientes jovens.
              Arritmias podem ser manifestações únicas de miocardite, com ou sem dilatação de câmaras. Pacientes com taquicardia ventricular sem causa aparente, quando submetidos a biópsia endomiocárdica, demonstram processo inflamatório. Portanto, arritmias cardíacas que surgem sem causa aparente devem ter entre as hipóteses diagnósticas a miocardite.

              Pacientes com quadro clínico de pericardite fibrinosa ou aguda, como nós clínicos gostamos de chamá-la, com dor precordial, atrito pericárdico e segmento ST supradesnivelado ao eletrocardiograma recebem, em geral, o diagnóstico de pericardite viral e são tratados com antiinflamatórios. Muitos destes, entretanto, são portadores de perimiocardite, que pode evoluir para miocardite linfocitária e posterior dilatação cardíaca. Portanto, mesmo após o desaparecimento do quadro agudo, devem ser observados atentamente.
              Do exposto, depreende-se que a apresentação clínica da miocardite é heterogênea, devendo haver sempre alto grau de suspeição por parte do clínico.

    Alterações laboratoriais

              Os exames laboratoriais não são diagnósticos. Eles indicam a presença de atividade inflamatória ou de agressão miocárdica. Cerca de 60% dos pacientes irão apresentar um aumento dos marcadores de inflamação como VHS ou da PTN C reativa; e 25%, leucocitose inespecífica. A ausência de marcadores inflamatórios positivos, ou de elevação enzimática, não nos permite excluir o diagnóstico de miocardite. As enzimas miocárdicas poderão estar elevadas na presença de necrose miocárdica detectável. Destas, as troponinas T e I são as que apresentam a maior sensibilidade na detecção da agressão do miócito, estando elevadas em 32% dos pacientes, enquanto que a CKMB encontra-se elevada em 12%. Os níveis séricos enzimáticos correspondem ao grau de agressão miocárdica e apresentam um comportamento diferente do infarto agudo do miocárdio, pois não seguem o padrão usual da curva enzimática, permanecendo com pico mais prolongado e queda mais lenta.
              Outros exames estariam relacionados à tentativa de se identificar a presença do agente viral nas análises de sangue, fezes, pericárdio e miocárdio, como pesquisa de IGM e PCR para diversos vírus, como coxsackie, citomegalovírus e hepatite C, ou na avaliação de atividade de doença do colágeno (esclerodermia, lúpus eritematoso sistêmico, polimiosite) e doença reumática.

    Eletrocardiograma

              O eletrocardiograma do paciente portador de miocardite apresenta-se de forma heterogênea, sendo descritos: taquicardia sinusal, fibrilação atrial, sobrecarga ventricular esquerda, bloqueios atrioventriculares, alterações do segmento ST, alterações de repolarização e complexos de baixa voltagem. As aliterações eletrocardiográficas são observadas com maior freqüência do que as alterações clínicas. As alterações mais comuns são as do segmento ST, podendo apresentar-se como supra ou infra de ST, e da onda T, com ondas apiculadas ou invertidas. Usualmente, as alterações se distribuem difusamente e são transitórias. Raramente temos a presença de onda Q. Arritmias atriais, taquicardia sinusal persistente, extra-sístoles ventriculares ou taquicardias ventriculares não-sustentadas também podem ser observadas. Os distúrbios de condução atrioventricular não são comuns e, quando ocorrem, são transitórios. Os bloqueios de ramo, principalmente o esquerdo, geralmente estão associados com importante envolvimento miocárdico, e indicam pior prognóstico.

    Ecocardiograma

              Pode-se detectar disfunção sistólica com diminuição da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, dilatação de câmaras ventriculares e atriais, insuficiências mitral e tricúspide secundárias e, eventualmente, disfunção diastólica. Outros achados são: hipertrofia miocárdica, acinesia, discinesia, derrame pericárdico e trombose intracardíaca.

    Cintilografia miocárdica

              A medicina nuclear é um método não-invasivo que apresenta importante papel tanto no diagnóstico como na evolução da miocardite. Vários radiofármacos têm sido utilizados no diagnóstico de inflamação, entre eles o gálio-67, a cintilografia com leucócitos marcados com In-111 (indium-111) e o estudo cintilográfico com anticorpo monoclonal antimiosina marcado com In-111 ou Tc-99m 3.
              Na cintilografia cardíaca com gálio-67, as imagens são adquiridas 48 ou 72 horas após administração endovenosa do radiofármaco, na incidência anterior do tórax. A captação é considerada discreta, moderada ou severa, sendo a comparação feita entre a intensidade de captação cardíaca e a captação com arcos costais e externo. Em nosso meio, Camargo, em 1990, estudando crianças portadoras de miocardiopatia dilatada, tomando como padrão-ouro a biópsia endomiocárdica de ventrículo direito, observou sensibilidade da cintilografia de 87% e especificidade de 81% na detecção de miocardite. As conclusões desse estudo foram: 1) todos os pacientes com miocardite tiveram gálio positivo; 2) gálio discretamente positivo tem alta incidência de falsa positiva, sendo que 40% destes pacientes têm fragmentos obtidos pela biópsia endomiocárdica normais à microscópica de luz; 3) não se justifica biópsia em pacientes cujo resultado do gálio é negativo.
              A capacidade da cintigrafia de detectar a presença de resposta inflamatória miocárdica está diretamente relacionada com a fase evolutiva em que se encontra a doença. Temos uma capacidade de detecção de cerca de 80% na fase 1, 40% a 60% na fase 2, e 8% a 12% na fase 3.
              O outro método de avaliação de miocardite em atividade é através da detecção de miocitólise por cintigrafia com anticorpo antimiosina indium-111. A aplicação desta técnica tem demonstrado sensibilidade de 83% e especificidade de 53%, com um valor preditivo positivo de 92%.

    Ressonância Nuclear Magnética

              A análise pela RNM de ambos os ventrículos traz informações precisas sobre a presença e a extensão do processo inflamatório. O método pode ser utilizado no início do processo inflamatório, assim como no seguimento dos pacientes com miocardite. É um exame sensível, que traz importantes informações clínicas e apresenta baixo risco e desconforto mínimo quando comparado a exames invasivos.
              Friedrich et al. acompanharam 19 pacientes com suspeita clínica de miocardite, utilizando a variação na seqüência em T1 com gadolínio. Em sete pacientes também foi realizada a biópsia endomiocárdica, e o padrão morfológico, comparado com RNM. Os exames foram realizados nos seguintes dias após o início dos sintomas: 2, 7, 14, 28 e 84. A miocardite aguda no início apresentou-se como um processo localizado, evoluindo para doença miocárdica difusa. A RNM permitiu visualizar a localização, a atividade e a extensão da inflamação, sendo um bom método complementar diagnóstico não-invasivo.
              Da mesma forma que a cintigrafia, a RNM tem uma menor capacidade de detecção nas fases mais tardias da doença, sendo a sua maior acurácia nas fases 1 e 2.

    Biópsia Endomiocárdica do Ventrículo Direito

              A miocardite tem definição histopatológica, de tal forma que seu diagnóstico final deverá ser feito com a biópsia endomiocárdica do ventrículo direito.
              A capacidade diagnóstica da biópsia endomiocárdica está intimamente relacionada com a fase evolutiva da doença. Uma vez que a biópsia busca detectar a fase imune-celular, esta terá maior capacidade diagnóstica nas fases 1 e 2. Na fase tardia da doença, esta só consegue detectar a ativação inflamatória em cerca de 8% dos casos.
              A fim de padronizar o diagnóstico de miocardite, um grupo de especialistas reuniu-se em Dallas, nos Estados Unidos, em 1987, para estabelecer critérios histológicos para o diagnóstico por meio da biópsia endomiocárdica. Com estes critérios atingiu-se um consenso para o desenvolvimento de trabalhos. Na miocardite severa não há controvérsia entre os patologistas. O problema, porém, estaria nos casos discretos, pois os critérios de Dallas não estabelecem o número mínimo de células no infiltrado inflamatório para um exame anormal. Atualmente, além do diagnóstico histopatológico, também podem-se obter importantes informações pela técnica de biologia molecular (Desmond).

    Detecção de Genoma Viral:
    Técnicas de Biologia Molecular

              Evidências sugerem que os vírus não somente contribuem para a fase aguda da miocardite, mas também para a evolução da doença cardíaca. Com as novas técnicas de biologia molecular, a persistência dos vírus e sua interação com o sistema imune permitem novas pistas na compreensão das miocardites e da miocardiopatia dilatada (Kawai).
              Em crianças, a principal causa de insuficiência cardíaca é a miocardite. Utilizando técnicas de biologia molecular, polymerase chain reaction (PCR) ou transcriptase reversa (TR), Calabrese et al. analisaram 59 biópsias endomiocárdicas, de 48 pacientes consecutivos (< 18 anos), com diagnósticos clínico e histológico de miocardite, empregando primers para amplificar várias seqüências de vírus DNA e RNA. Genoma viral foi encontrado em 20 pacientes (49%): 12 de 26 pacientes (46%) com miocardite, seis de 13 pacientes (46%) com miocardiopatia dilatada. Enterovírus foram os agentes mais comumente encontrados na miocardiopatia dilatada (72%), e os adenovírus e os enterovírus foram os mais prevalentes na miocardite (36%). Os autores também observaram que, nos casos em que havia a presença do genoma viral, existia também infiltrado inflamatório e lesão miocárdica, assim como pior função ventricular.

    Detecção de Agressão Imune-Humoral na Fase 3

              A avaliação da agressão imune nesta fase se faz através de métodos de imunoistoquímica, com a marcação de HLA de tipos 1 e 2 tecidual e vascular. Podemos encontrar a presença de HLA positivo em até 90% a 100% dos casos em que a detecção por análise de celularidade tem somente 8% de positividade.

    Terapêuticas
    Tratamento Imunossupressor

              O tratamento imunossupressor baseia-se na segunda fase da evolução da miocardite, na qual a ação viral desencadeia uma resposta imune do hospedeiro.
              Em nosso meio, Arteaga et al., em 1990, publicaram um estudo com 102 pacientes com diagnóstico de miocardiopatia dilatada com até 12 meses de evolução. Em 51 pacientes foi observada miocardite linfocitária. Dez pacientes, além do tratamento convencional com digital, diurético e inibidores da enzima conversora da angiotensina, receberam prednisona e azatioprina por seis meses. Neste grupo não foi observada melhora significativa em relação ao quadro clínico ou à função do ventrículo esquerdo, quando comparado ao grupo de 41 pacientes que apenas receberam a medicação convencional. Entretanto, a mortalidade foi três vezes maior no grupo que recebeu drogas imunossupressoras.
              Com o objetivo de analisar os efeitos favoráveis da terapia imunossupressora em crianças com cardiomiopatia e miocardite ativa, Camargo, em 1995, estudou 68 crianças com idades variando de 10 meses a 15 anos. Elas foram divididas em quatro grupos: I) controle - nove pacientes (digital, diurético, vasodilatadores); II) prednisona - 12 pacientes com a terapêutica convencional mais prednisona; III) azatioprina - 16 pacientes submetidos à terapêutica convencional mais prednisona e azatioprina; IV) ciclosporina - 13 pacientes tratados com a terapêutica convencional mais prednisona e ciclosporina, analisando-se os resultados por meio de exames não-invasivos e invasivos (hemodinâmica). Dos pacientes submetidos à terapêutica convencional, apenas 2/9 apresentaram melhora clínica e hemodinâmica. Entre os pacientes submetidos à terapêutica convencional mais prednisona, 3/12 casos tiveram melhora clínica e hemodinâmica. Em contraste, pacientes submetidos à terapêutica com azatioprina e ciclosporina apresentaram melhores resultados: 13/16 e 10/13 pacientes, respectivamente, tiveram melhora clínica e hemodinâmica. Este trabalho demonstra os efeitos benéficos da terapêutica imunossupressora em crianças, porém o número de pacientes alocados em cada grupo é pequeno.
              Em 1995 foram publicados os resultados do Myocarditis Treatment Trial, realizado em 31 centros de EUA, Canadá, Reino Unido e Japão, que entre 1986 e 1990 estudou 2.233 pacientes com diagnóstico de miocardiopatia dilatada, fração de ejeção menor do que 0,45 e idade média de 42 anos, que realizaram biópsia endomiocárdica do ventrículo direito. Apenas 214 pacientes (10%) apresentavam diagnóstico histopatológico sugestivo de miocardite. Cerca de 111 pacientes foram randomizados: os 47 pacientes do grupo controle receberam medicação convencional; prednisona e azatioprina foram dadas a 19 pacientes; e outros 45 receberam prednisona e ciclosporina durante quatro meses. Ao final do estudo não se observou melhora significativa da função do ventrículo esquerdo, nem da sobrevida, nos pacientes que receberam medicação imunossupressora, quando comparados aos do grupo controle. As críticas realizadas a este estudo incluem: 1) muitos pacientes alocados não tinham miocardite vigente; 2) os pacientes eram estáveis e não apresentavam risco elevado ou imediato; 3) a dose de prednisona e ciclosporina dada à grande maioria dos pacientes não era muito potente. O próprio Mason, em um editorial publicado em 2002, questiona se muitos dos pacientes alocados para o tratamento imunossupressor e que haviam apresentado doença viral recente estariam na terceira fase (remodelamento adverso com miocardiopatia dilatada), ou seja, persistência de níveis virais não-detectáveis porém suficientes para manter um baixo nível de destruição imune mediada.
              Por outro lado, a melhora espontânea ocorre em muitos pacientes com miocardite. Em uma metanálise de 12 estudos, com 388 indivíduos, com e sem biópsia endomiocárdica, observou-se melhora em 58% dos pacientes, que estavam recebendo apenas medicação para insuficiência cardíaca congestiva, enquanto 37% não apresentaram melhora ou pioraram.
              Em outra metanálise, de 19 estudos e 250 indivíduos, que além do tratamento convencional da insuficiência cardíaca receberam prednisona e azatioprina ou ciclosporina, observou-se que 61% dos pacientes melhoraram e 39% não apresentaram melhora ou pioraram, de forma muito semelhante aos pacientes que não receberam medicação imunossupressora.
              Deve haver subgrupos de pacientes que poderiam se beneficiar do tratamento imunossupressor. Seriam pacientes com processo inflamatório evidente e com baixo grau de deposição de colágeno, havendo assim maior possibilidade de involução dos volumes ventriculares. Esta idéia poderia explicar a diferença entre os resultados de crianças e adultos obtidos no Instituto do Coração. Outros marcadores devem existir, ainda desconhecidos por nós. Infelizmente, esses pontos não foram aventados no trabalho de Mason et al., e os maus resultados obtidos geraram descrédito em relação ao tratamento. Portanto, achamos que a idéia de tratamento imunossupressor não deve ser totalmente abandonada, e sim individualizada.

    Imunomodulação: gamaglobulina

              Novos tratamentos imunomodulatórios foram propostos para o tratamento da miocardite aguda.
              O uso da gamablobulina baseia-se no fato de que a lesão miocárdica é mediada por mecanismos auto-imunes, em adição aos efeitos diretos miocárdicos da infecção viral. O mecanismo de ação da gamaglobulina parece ser a modulação da resposta imune, além do mecanismo antiviral, que resulta em diminuição da inflamação miocárdica pela down-regulation de citocinas pró-inflamatórias, as quais possuem efeito inotrópico negativo direto. Em 1994, Drucker et al. publicaram um estudo de 46 crianças com insuficiência cardíaca de início menor que três meses e biópsia endomiocárdica demonstrando miocardite. Em 21, além do tratamento convencional foi dada gamaglobulina endovenosa na dose de 2g/kg. Após um ano, o grupo que recebeu gamaglobulina mostrou melhora significativa da fração de ejeção, diminuição da cavidade ventricular esquerda e uma tendência a melhor sobrevida.
              Em 1996 foi desenvolvido um estudo duplo-cego randomizado, The Intervention in Myocarditis and Acute Cardiomyopathy (Imac), com o objetivo de determinar a ação das imunoglobulinas na função ventricular em pacientes com miocardiopatia dilatada de recente começo ou miocardite. Sessenta e dois pacientes com miocardiopatia dilatada de recente começo (seis meses de sintomas) e fração de ejeção de 40% foram randomizados com 2g/kg de imunoglobulina endovenosa ou placebo. Todos foram submetidos a biópsia endomiocárdica de ventrículo direito, sendo que apenas 16% tinham miocardite. O objetivo primário foi alteração da fração de ejeção ventrículo esquerdo (FEVE) em seis e 12 meses. A FEVE melhorou de 0,25 ± 0,08 para 0,41 ± 0,17 em seis meses (p < 0,001) e 0,42 ± 0,14 (p < 0,001 versus basal) em 12 meses. O aumento foi virtualmente idêntico nos pacientes que receberam imunoglobulina (IVIG) e placebo (seis meses: IVIG 0,14 ± 0,12, placebo 0,14 ± 0,14; 12 meses: IVIG 0,16 ± 0,12, placebo 0,15 ± 0,16). As conclusões deste estudo foram de que, em pacientes com miocardiopatia dilatada de início recente, o uso de imunoglobulina endovenosa não trouxe melhora para a função ventricular. No entanto, a fração de ejeção melhorou significativamente, e o prognóstico a curto prazo foi favorável em ambos os grupos.

    Perspectivas

              Está em andamento o estudo The European Study of Epidemiology and Treatment of Cardiac Inflammatory Disease (Esetcid), baseado na etiologia da miocardite com medicação direcionada de acordo com a etiologia.

    Tratamento da Miocardite em Modelos Experimentais

              - Interferon á - inibe a replicação viral e reduz a resposta inflamatória quando administrado anteriormente ou simultaneamente à inoculação viral (Matsumori). Anticorpos antiinterferon a diminuem o grau de lesão miocárdica e melhoram a sobrevida de ratos tratados um dia antes da inoculação do vírus da encefalomiocardite;
    - imunização passiva com vacinas vírus-específicas previne o aparecimento de miocardite. Vacina contra enterovírus coxsackie B3 em ratos evitou o aparecimento de miocardite;
    - vesnarinone, do grupo das quinolonas com efeito inotrópico positivo, possivelmente modula a produção de citocinas no início da infecção. Em modelo de rato infectado pelo vírus da encefalomiocardite, melhorou a sobrevida por suprimir a produção de TNF-á e de celular natural killers.
    - bloqueador de angiotensina II (AT1) diminui o dano miocárdico e melhora a sobrevida de ratos infectados pelo vírus da encefalomiocardite; - captopril diminui a necrose celular e o infiltrado inflamatório na miocardite induzida pelo vírus coxsackie B3;
    - ribavirina, agente antiviral de largo espectro, reduziu a replicação viral miocárdica e a resposta inflamatória e aumentou a sobrevida em camundongos com miocardite induzida pelo vírus da encefalomiocardite;
    - vitamina E melhora a evolução da miocardiopatia em hamsters sírios, possivelmente por seu efeito antioxidante;
    - L-arginina - o óxido nítrico é um radical livre que medeia funções fisiológicas vitais, além da imunidade não-específica. Vários tipos celulares são capazes de produzir óxido nítrico pela conversão da L-arginina para L-citrulina pela enzima óxido nítrico sintetase. A inibição desta enzima aumenta os níveis de títulos virais e agrava a fase aguda da miocardite, além de diminuir a produção da matriz extracelular. O óxido nítrico parece exercer um importante papel protetor na inflamação cardíaca. Inibe aderência de leucócitos a linfócitos e suprime a expressão local de citocinas inflamatórias, regulando o tônus vasomotor. Hiraoka et al., em trabalho experimental, demonstraram que o tratamento com L-arginina melhora o curso e reduz o dano cardíaco na miocardite murina, com elevações de L-arginina e os níveis de óxido nítrico elevam-se com o tratamento com L-arginina.