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    São 15h30 e, pontualmente, como de costume, seu paciente entra no seu consultório. Na realidade, aquele executivo de 43 anos faz uma revisão anual por determinação da empresa onde trabalha. Nunca apresentou qualquer enfermidade. Repetindo as cenas de outros anos, você entrega os exames realizados, todos sem alterações, fazendo as recomendações de rotina quanto ao estilo de vida. Autores

    Hans Fernando Dohmann - Treinamento em Prática Clínica Baseada em Evidências na McMaster University; Doutorando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; MBA em Saúde – Coppead/UFRJ; MBA Serviços – Ibmec; Coordenador do Laboratório de Intervenção Cardiovascular do Hospital Pró-Cardíaco.

    Evandro Tinoco Mesquita - Professor Adjunto de Cardiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF); Coordenador da Unidade de Emergência e Dor Torácica do Hospital Pró-Cardíaco; Coordenador de Ensino do Centro de Ensino e Pesquisa do Pró-Cardíaco.


    A maioria de nós já viveu esta situação.

    No entanto, este ano, no final da consulta, ocorreu um fato novo na história médica deste paciente. Pela excelente relação médico/paciente que você desenvolveu com ele nos últimos anos, muito constrangido, o paciente resolve pedir orientações quanto a um problema de saúde que ele enfrentou em sua última viagem internacional e que vinha mantendo em sigilo absoluto desde então.

    Trazia um relatório de internação, datado de três semanas atrás, de um dos melhores hospitais do mundo, que informava um evento testemunhado de grande mal epilético. Você sabe que ele é consumidor de baixas doses de álcool duas vezes por semana, porém no dia do evento não havia bebido. Segundo o prontuário, e confirmado pelo próprio paciente, não há história recente de qualquer tipo de trauma encefálico. O exame físico de chegada foi normal, da mesma forma que a tomografia de crânio e o eletroencefalograma. Foi tratado com fenitoína venosa, que foi mantida por via oral.

    A angústia de seu paciente era saber suas chances de novos eventos. Além do interesse pela própria saúde, ele havia marcado uma reunião, que ocorreria dentro de trinta minutos, com sua esposa e o presidente da companhia, muito amigo dele, para comunicar o fato. Os especialistas que o atenderam disseram que o risco é alto, porém ele julga importante ouvir a opinião do médico de confiança, além do fato de ser o médico recomendado pela empresa.

    Você, que é o cardiologista indicado pela empresa para fazer os check-ups, agiria de que forma? Você poderia dizer que esta não é sua especialidade e que, portanto, não teria como responder às perguntas solicitadas, gerando um desapontamento por parte do paciente, de sua esposa e do presidente da companhia. Você poderia telefonar para um especialista amigo seu, que talvez não lhe desse mais informações que os especialistas que atenderam o paciente. Ou você poderia aproveitar suas habilidades em prática clínica baseada em evidências (PCBE) para informar o paciente e encaminhá-lo ao especialista para acompanhamento.

    Objetivos

    O objetivo deste texto é discutir alguns aspectos do conceito de PCBE, desfazendo alguns mitos, procurando torná-los, em realidade, apropriados ao conceito original de medicina baseada em evidências (MBE), e, ao descrever sucintamente o método de PCBE, procurar dar base aos argumentos expostos na primeira fase do texto.

    Mitos e realidades envolvendo o conceito de mbe

    Mito 1 – A MBE não leva em consideração as particularidades de um dado paciente, uma vez que se baseia em dados retirados de ensaios clínicos formados por grandes grupos de pacientes.

    MBE é o termo relacionado a um determinado método de tomada de decisão em assuntos de saúde, quer sejam de um paciente, quer sejam decisões de medicina populacional ou de grupos de pacientes.

    Portanto, dependendo do cenário no qual este método está sendo praticado, este termo deve ser substituído por outros que especifiquem este cenário. Assim, se o método é utilizado em tomada de decisão clínica, à beira do leito ou no consultório, referimos como PCBE(1), bem como utilizamos Gestão Baseada em Evidências (GBE)(2) para cenários de tomada de decisão gerencial em medicina de grupo. Neste texto, estaremos nos referindo ao cenário de tomada de decisão clínica durante a prática do cuidado ao paciente, portanto estaremos focados em PCBE.

    Cada um destes termos contém todos os princípios do método descrito pelo termo MBE adicionado de algumas peculiaridades referentes ao cenário específico no qual este método está sendo aplicado. Talvez a peculiaridade mais marcante da PCBE seja a individualização da análise realizada, visando à obtenção de informações específicas para aquele paciente que motiva a tomada de decisão que está sendo avaliada. Na seção Mitos e realidades envolvendo o conceito de MBE, onde se encontra a descrição do método de PCBE, o tópico Mito 3, que se refere à análise crítica, à aplicabilidade e à verificação de resultados, aborda alguns exemplos de tomada de decisão individualizada.

    Realidade 1 – Através do emprego do método de PCBE é possível (e desejável) tomar decisões clínicas particularizadas para o seu paciente. Por outro lado, a GBE toma decisões voltadas para grupos de pacientes ou população.


    Mito 2 – PCBE é a valorização dos dados dos ensaios clínicos na tomada de decisão de um determinado paciente, desvalorizando a experiência clínica.

    Na visão dos grupos que vêm desenvolvendo o método de PCBE desde seus primeiros passos, a boa prática clínica relaciona-se à aplicação, da forma mais plena possível, das três dimensões que a compõem e que estão representadas na Figura 1.

    A definição de PCBE refere-se, portanto, ao método que otimiza a dimensão das evidências na tomada de decisão clínica de forma transparente e o mais criteriosa possível(1). Obviamente que, de forma similar, quão melhor for o rendimento nas demais dimensões, tanto maior a chance do profissional no sentido de fazer bem aos seus pacientes. No mesmo sentido, é muito claro que profissionais com larga experiência terão capacidade muito maior de aplicar o método proposto(3). Um bom exemplo do valor da experiência clínica no método de PCBE está descrito no tópico Mito 2.

    Realidade 2 – A PCBE valoriza a utilização transparente e criteriosa das evidências disponíveis em combinação com a experiência clínica, dentro do contexto bioético vigente na sociedade, que rege, em última análise, a relação médico/paciente.

    Mito 3 – Para a PCBE é fundamental ser um profundo conhecedor de epidemiologia, da bioestatística e da metodologia de pesquisa.

    Infelizmente, a maioria do material didático envolvido nos cursos e textos sobre MBE valoriza o conhecimento metodológico e estatístico para a interpretação de grandes ensaios. Longe de negar a importância e a propriedade deste material quando consideramos os objetivos a que se propõem, ao contrário, consideramo-lo, em sua maioria absoluta, de destacada qualidade de conteúdo. No entanto, poucos são os textos e atividades didáticas que valorizam a sistematização de ações para a tomada de decisão baseada em evidências, colocando a metodologia de pesquisa e a estatística na perspectiva correta, ou seja, que o método de PCBE nada mais é que um sistema de perguntas pré-formatadas que, uma vez respondidas, viabilizam uma análise crítica das evidências por médicos que não são profundos conhecedores destas duas disciplinas, aumentando assim o desempenho destes profissionais na dimensão Evidências(4). Exemplos desta intenção da MBE estão disponibilizados no tópico Mito 3, onde podemos observar como este método pode nos ajudar.

    Realidade 3 – MBE é um método que otimiza a capacidade de avaliação crítica das evidências, tornando-a possível mesmo para aqueles que não são profundos conhecedores de epidemiologia, metodologia de pesquisa e bioestatística.

    Mito 4 – Para a PCBE, a melhor recomendação é seguirmos as diretrizes das diversas sociedades médicas nacionais e internacionais.

    É importante observar que, se raciocinarmos sob a ótica da GBE, as diretrizes têm um papel muito relevante, uma vez que ambas cuidam de grupos de pacientes. No entanto, a despeito da utilidade das diretrizes como peça referencial da prática clínica em diversos países do mundo, e da excelente qualidade da maioria destes documentos, elas têm dois problemas sérios como instrumento de tomada de decisão frente a um determinado paciente(5).

    O primeiro é o tempo entre a elaboração do documento e a chegada à comunidade médica. Na maioria das vezes este processo demanda meses, fazendo com que, em alguns casos, quando os médicos têm acesso ao mesmo, ele já esteja desatualizado, pois neste ínterim foi publicado um estudo altamente relevante.

    Esta é a situação atual das diretrizes de dislipidemias. Considere o seguinte paciente que chegue em seu consultório hoje: sexo masculino, 67 anos, hipertenso controlado com ramipril, diabético do tipo II com glicemia bem controlada, colesterol total de 205mg e LDL de 98mg. Você está plenamente familiarizado com as diretrizes nacionais e internacionais e sabe que, para este paciente de alta probabilidade e risco de doença coronariana (porém sem doença conhecida), as recomendações são no sentido de instalar dieta e modificações no estilo de vida. No entanto, se você tem o hábito de PCBE, ao seguir todas as etapas da sistematização, você se deparará com a informação do estudo HPS(6), publicado no dia 6 de julho último, que, para este paciente, o início de terapia com sinvastatina reduz o risco de forma significativa.

    O segundo diz respeito à individualidade desta decisão a ser tomada, uma vez que as diretrizes abordam pacientes como grupo. Já comentamos anteriormente a preocupação da PCBE em individualizar a tomada de decisão. Neste sentido, podemos comparar a expressão numérica dos riscos de um indivíduo portador de angina instável de alto risco, com indicação de inibidor da glicoproteína IIb e IIIa e com história de evento hemorrágico digestivo recente, com a expressão numérica do benefício esperado da droga. Dentro do método da PCBE isto é possível com algumas contas de dividir e subtrair(7). O fato de trabalharmos com expressões numéricas derivadas diretamente de evidências da literatura faz esta forma de individualização de tomada de decisão ser estritamente judiciosa e transparente, facilitando inclusive a relação do médico com seu paciente e seus familiares.

    Realidade 4 – Diretrizes, a despeito de serem importantes ferramentas de referência de gestão em saúde, nem sempre são a melhor evidência disponível para a tomada de decisão clínica.

    O método de PCBE

    Fundamentos


    PCBE é uma sistematização de ações divididas em quatro etapas principais, sendo a primeira o reconhecimento de um gap de conhecimento, com a identificação da questão exata que nos aflige quando estamos para tomar decisão referente a um paciente(1). Esta questão deve ser formulada de forma a facilitar a procura das evidências, e para isso algumas dicas serão comentadas a seguir.

    A segunda grande etapa é exatamente a busca das evidências. Não há dúvidas de que o avanço do conceito de PCBE está diretamente ligado ao avanço dos sistemas eletrônicos de informação, principalmente à Internet, onde é possível se fazer uma revisão completa da literatura em poucos minutos. No entanto existem métodos alternativos que viabilizam a PCBE em lugares que não têm acesso à Internet, ou para aqueles profissionais que não estejam treinados para navegar na grande rede. Não é objetivo deste texto discutir estes métodos alternativos, de forma que estaremos nos referindo aos bancos de dados médicos da Internet para a busca das evidências.

    A terceira etapa é a avaliação crítica da evidência buscada. Para esta avaliação crítica, a PCBE oferece um roteiro de perguntas pré-formatadas a serem respondidas. Nós buscamos as respostas na própria evidência (tal qual um exercício de interpretação de texto), e ao respondermos a todas, teremos realizado um processo de avaliação crítica quanto à metodologia utilizada e quanto aos aspectos bioestatísticos.

    A quarta etapa recomenda a verificação dos resultados das tomadas de decisão, considerando o benefício de saúde dos pacientes como forma de autodidatismo da própria prática. Vamos, nos tópicos abaixo, detalhar cada uma destas etapas da PCBE.

    Primeira e segunda etapas: formulação da pergunta e busca das evidências

    Trataremos destas etapas de forma conjunta devido à grande conexão prática entre elas. Na realidade, conforme veremos adiante, a formulação da pergunta é de fundamental importância no sucesso da busca das evidências de forma rápida e efetiva.

    No entanto, o passo mais difícil de dar é a mudança de comportamento do profissional de saúde diante de situações onde a dúvida aparece. Tradicionalmente, o comportamento em geral é de negar a dúvida, ou postergar o seu esclarecimento para outro momento, mais tarde, em casa ou com algum expert no assunto. A PCBE requer um comportamento diferente, em que o profissional assume a dúvida, identifica-a e, caso possível, posterga a decisão por alguns minutos, tempo necessário para avaliação crítica e sumária das melhores evidências disponíveis. Esta mudança de reação frente a situações de dúvida é difícil de ser conquistada e, usualmente, só se cristaliza após alguns meses de muita autodisciplina.

    Uma vez que você esteja disposto a se desenvolver em PCBE, admitamos a situação onde você seja o médico assistente de um paciente internado. Ao chegar para sua visita matinal, encontra o plantonista da unidade em dúvida com relação à melhor conduta a ser tomada. Você admite, primeiro internamente e depois para o plantonista, que também tem dúvidas quanto à tomada de decisão. Ambos resolvem tomar a decisão baseados em evidências. Dirigem-se ao computador do hospital e vão partir em busca das evidências.

    Como você tem estudado PCBE, lembra ao colega que a formulação de uma pergunta ajudaria muito na busca das evidências. A formulação da pergunta depende muito do grau de experiência que os médicos têm no assunto. Assim, se a tomada de decisão envolve um assunto no qual os profissionais não possuem muita experiência, as perguntas tenderão a ser voltadas para os fundamentos do assunto. Este tipo de pergunta é caracterizado pela presença de um pronome no início da pergunta (ex.: “Qual a causa...?”, “Qual o tratamento...?”, “Como se desenvolve...?”, “Qual a droga empregada em prevenção primária de doença arterial coronariana?”).

    Por outro lado, se os profissionais têm larga experiência no assunto, outro tipo de pergunta naturalmente se desenvolve: são questões de especialidade, que devem ser compostas por, pelo menos, três partes distintas. A primeira diz respeito ao paciente; a segunda, à intervenção que está sendo avaliada; e a terceira, ao tipo de resultado desejado (p. ex.: “Em pacientes com alta probabilidade de doença coronariana com DL normal, devo iniciar estatinas objetivando prevenção primária de mortalidade por DAC?”).

    Observe a enorme diferença entre as perguntas sobre prevenção primária. As palavras a serem utilizadas na busca das evidências saem da pergunta formulada, de forma que, utilizando a segunda pergunta (a de especialidade) como exemplo, caracterizaríamos como palavras-chave de busca das evidências a caracterização do paciente – doença arterial coronariana –, da intervenção – estatinas –, e do resultado esperado – prevenção primária e mortalidade. A combinação destas palavras- chave nos instrumentos de busca das evidências fornecerá uma lista de artigos científicos, dos quais você vai escolher as evidências mais adequadas para a tomada de decisão. E isto se dá em menos de cinco minutos!

    Por outro lado, tomando-se por base a pergunta de fundamento, o número de artigos citados será maior e a busca, mais trabalhosa. Nestas situações, em que a pergunta está mais voltada para os fundamentos da tomada de decisão, a revisão de diretrizes ajuda a desenvolver novas questões com formatos mais específicos, que visem a checar a atualidade da diretriz consultada. Observe que a valorização da experiência clínica do profissional é intrínseca no método da PCBE, derrubando, conforme já tínhamos adiantado, o Mito 2.

    De posse das palavras-chave a serem utilizadas, a forma como isto será feito dependerá do instrumento de busca de literatura utilizado (ex., Pubmed, GratefulMed, entre outros)(8-10). Os sites destes instrumentos de busca disponibilizam as informações necessárias para este aprendizado. Para aqueles que não dispõem de acesso à Internet no ambiente de trabalho, casos cada vez mais raros, também é possível a PCBE. Nestes casos, o profissional deverá realizar sua busca em outro momento e gerar uma ficha de avaliação crítica de evidências, com as informações necessárias à PCBE, disponibilizando-a no ambiente de trabalho para que repetições da mesma situação possam ser atendidas no local, no momento da tomada de decisão.

    Terceira e quarta etapas: avaliação crítica, aplicabilidade e verificação dos resultados

    Uma vez que o artigo científico tenha sido encontrado, devemos submetê-lo a um processo de avaliação crítica( 11-13). Infelizmente, nem todos os artigos científicos apresentam seus dados de forma ótima para interpretação do impacto clínico de determinada decisão. A sistematização de avaliação crítica da literatura compreende responder uma série de questões pré-formuladas, que variam de acordo com a aplicação do artigo científico.

    Assim, a primeira preocupação neste sentido é considerar em que tipo de decisão estamos envolvidos, isto é, se é uma decisão diagnóstica, terapêutica, prognóstica, etiológica, análise econômica, etc. A série de perguntas a ser respondida vai variar de acordo com esta informação.

    Esta série é dividida em três subconjuntos de perguntas.

    1) Qual a validade do artigo científico?

    A validade de um artigo científico está diretamente relacionada à metodologia utilizada na pesquisa. Neste sentido, estas perguntas procurarão conferir os principais pontos metodológicos de acordo com o cenário da tomada de decisão (terapêutica, diagnóstica, etc.). Assim, se o cenário é terapêutico, é importante checar no texto se ele é randomizado, duplo-cego, placebo-controlado, etc. Por outro lado, se o cenário é diagnóstico, é importante saber se o método avaliado foi comparado ao padrão ouro vigente, se as análises foram feitas sem o conhecimento do resultado do padrão ouro, etc. Formular as perguntas para cada cenário foge do escopo deste texto, porém elas estão disponíveis na literatura de PCBE. Outra excelente alternativa (uma vez que o sistema de PCBE visa a facilitar ao máximo este trabalho) refere-se a uma série de cartões que cabem no bolso, que apresentam estas perguntas já formatadas e que funcionam como guia para o usuário em treinamento, sem que este dependa de consulta a qualquer literatura toda vez que for avaliar criticamente um artigo (Figura 2a e 2b).

    2) Se ele é válido, qual o impacto clínico da informação nele contida?

    Se o método utilizado foi válido, o próximo passo a ser dado é determinar se a informação ali contida tem impacto clínico ou não. Esta etapa, que corresponderia a uma análise estatística dos resultados, torna-se a aplicação de alguns nomogramas (Figura 2) acompanhada de algumas contas de subtração e divisão. Como exemplo imaginemos que estamos voltados para a tomada de decisão diagnóstica. Imaginando um paciente que tenha uma probabilidade clínica (pré-teste) de apresentar determinado diagnóstico em torno de 50%, qual o impacto clínico do uso do exame diagnóstico A? Buscamos um artigo, vimos que ele é válido e agora vamos ver qual o impacto clínico do uso de um determinado método diagnóstico. Os dados do artigo nos revelam que o referido teste apresenta sensibilidade de 75% e especificidade de 85%. Será que o teste diagnóstico nos vai ser útil (qual o impacto clínico se aplicarmos este teste no nosso paciente)?

    Com base nestes números, que devem estar disponíveis em qualquer artigo diagnóstico, podemos calcular um atributo estatístico muito útil para avaliação de impacto clínico chamado de Razão de Verossimilhança Positiva. Este atributo é capaz de nos dizer de forma bastante prática o quanto a probabilidade do diagnóstico aumentaria em relação aos 50% iniciais, caso o exame fosse positivo. O cálculo, cuja fórmula fica disponível no cartão da Figura 2a, é feito da seguinte forma: RV+ = SENS/1-ESPEC. No nosso caso: 75/100 - 85 = 5.

    De posse deste número, a aplicação é imediata, utilizando-se o nomograma da Figura 2b. Na primeira coluna marca-se o valor da probabilidade da presença do diagnóstico antes da realização do teste (50%). Na do meio marca-se o valor de verossimilhança encontrado(5). Unindo-se os dois pontos com uma reta e estendendo-a até a terceira coluna, obtemos a probabilidade de doença no caso de o teste ser positivo. No nosso exemplo, podemos avaliar de forma transparente e criteriosa que a aplicação do exame A traria grande impacto clínico, pois, caso positivo, elevaria de forma importante a probabilidade diagnóstica para cerca de 90%.

    1) O presente estudo sobre determinado teste diagnóstico é válido?
    – Houve uma comparação com uma referência estabelecida de diagnóstico (padrão-ouro) cega e independente?
    – Teste diagnóstico foi utilizado em um grupo apropriado de pacientes, semelhante àquele no qual estaríamos utilizando o teste na prática?
    – A referência padrão-ouro foi aplicada independente do resultado do teste diagnóstico?
    – Teste ou grupo de testes foi validado em um segundo grupo de pacientes de forma independente?
    2) Considerando que o estudo é válido, qual o impacto clínico dos resultados?
    – Verificar a razão de verossimilhança positiva e negativa, especificidade e sensibilidade.
    3) Considerando que o estudo é válido e o impacto clínico é relevante, estes resultados são aplicáveis ao meu paciente?
    – Este teste diagnóstico é disponível, reprodutível, acurado e preciso em nosso subgrupo?
    – Nós somos capazes de gerar uma estimativa de probabilidade pré-teste clinicamente sensível para nossos pacientes?
    – A probabilidade pós-teste resultante afetará nosso tratamento e ajudará nosso paciente?

    2a

    2b
    Exemplo de um cartão para PCBE. No anteverso (a), as perguntas utilizadas na avaliação crítica da evidência; e, em (b), representação, no verso do cartão, do nomograma que permite o cálculo da probabilidade pós-teste

    Como é mais fácil responder a esta pergunta: analisando os números de sensibilidade e especificidade ou da forma que descreveremos? Através deste tipo de recurso e de instrumento que facilita a avaliação do impacto clínico, mesmo não sendo o profissional um profundo conhecedor de bioestatística, é que se responde a este segundo grupo de perguntas.

    3) Se o impacto justifica a intervenção, quanto ela é aplicável no seu paciente específico?

    Já vimos que o artigo é válido e que o impacto clínico é importante. Resta-nos determinar se estas informações são aplicáveis ao nosso paciente em particular. Novamente, as perguntas se remeterão ao método da pesquisa no sentido de se comparar se as características dos pacientes do estudo são semelhantes às do seu paciente, se a metodologia diagnóstica é reproduzível no seu cenário, etc.

    É neste momento que podemos individualizar a informação para a tomada de decisão para aquele paciente específico. Vejamos o exemplo de um paciente que necessite tomar um anticoagulante e que tenha passado de sangramento digestivo. Feita avaliação crítica do artigo escolhido para a aplicação da droga no cenário do paciente, observamos que o artigo é válido, o uso da droga neste cenário fictício tem grande impacto clínico (o que, em termos de terapêutica, significa dizer que a droga tem baixo número necessário para tratar (NNT), ou seja, tratando poucos pacientes com a droga, por um período determinado de tempo, previne- se um evento), porém, na aferição da aplicabilidade, observamos que a presença de história pregressa de sangramento constitui critério de exclusão do estudo. Neste sentido, a informação ali contida não é aplicável ao paciente do exemplo. Como, neste exemplo fictício, não existe um trabalho randomizado que inclua este tipo de paciente, podemos utilizar informações provenientes de série de casos que tenham incluído estes pacientes no sentido de verificar a prevalência de complicações hemorrágicas e, desta forma, balancear a chance de benefício (NNT) contra a chance de sangramento (NNH – número de pacientes tratados que geram um evento hemorrágico em determinado período de tempo). Em tempo, o cálculo do NNT se faz de forma tão simples quanto a razão de verossimilhança. Assim, teremos informações criteriosas e transparentes para a tomada de decisão de iniciar ou não anticoagulante para este paciente. Este é um belo exemplo de como a PCBE pode, e deve, individualizar a tomada de decisão.

    Após a tomada de decisão, recomenda a boa PCBE o acompanhamento dos resultados no sentido de se verificar se as estratégias escolhidas estão gerando resultados compatíveis com os observados nas evidências. Caso esta não seja a realidade, deve haver a verificação dos motivos desta disparidade.

    Conclusão

    No caso do seu paciente que tem uma reunião em 30 minutos, você tem tempo mais que suficiente para formular a pergunta “Qual o prognóstico de recorrência de epilepsia?” (observe que como você não é um especialista a pergunta é de fundamento). Utilizando as palavras- chave prognóstico, recorrência e epilepsia, no instrumento de busca GratefulMed, você pode encontrar 25 referências; e, analisando os títulos, você pode observar que uma é de especial utilidade(14). Todo este processo não consome mais que cinco minutos.

    Os próximos 15 a 20 minutos você pode dedicar a analisar o artigo e, ao verificar sua validade e aplicabilidade, você poderá informar ao seu paciente que o risco de recorrência em um ano varia de 30% a 48%, sendo que o risco em três anos é de 51% a 60%, e, caso ele tenha um período livre de eventos de 18 meses, este risco cai para menos de 20%. Estas informações, acompanhadas da recomendação de não interromper a medicação até ser avaliado por um especialista, permitirão ao seu paciente ter uma informação criteriosa e transparente que o ajudará na conversa com sua esposa e com o presidente da companhia. Da mesma forma, seu paciente valorizará ainda mais a relação médico/paciente que você desenvolve, assim como sua esposa e o amigo presidente da companhia.

    Temos a expectativa de, com este breve texto, auxiliar o entendimento do que, na realidade, é a PCBE. Esperamos, com o conteúdo aqui relatado, desmistificar alguns aspectos desta forma de prática clínica, ressaltando os meios pelos quais ela pode nos ajudar a tomar decisões, sempre em conjunto com as outras dimensões que compõem a ação médica. Não há dúvida de que isto representa uma mudança profunda no sistema de tomada de decisões, em alguns momentos tornando-a mais trabalhosa, porém mais transparente e criteriosa, aumentando a chance de beneficiar os pacientes.

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