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    Freqüentemente nos dias de hoje, na prática clínica, o exame à beira do leito é considerado desnecessário e perda de tempo. Na realidade, os instrumentos investigativos disponíveis hoje em dia são muito superiores ao exame à beira do leito para estabelecer o diagnóstico da anomalia anatômica presente e a severidade das suas conseqüências fisiopatológicas. Contudo, tão-somente o exame à beira do leito nos permite conhecer o paciente, entendê-lo, conhecer o seu sofrimento, as suas expectativas e estabelecer um relacionamento sadio com o mesmo. Autor
    Edson A. Saad

    Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor Titular de Cardiologia da Universidade Federal Fluminense; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.


              O exame clínico à beira do leito dá informações extremamente úteis sobre o diagnóstico e as possibilidades etiológicas de valvulopatias, miocardiopatias e doença pericárdica, que podem ser confirmadas por testes invasivos ou não-invasivos. O exame físico é também útil para decidir que investigações são apropriadas para estabelecer o diagnóstico. Além disso, uma avaliação clínica adequada é útil para estimar a resposta terapêutica e o prognóstico do paciente. Não há, na realidade, um substituto para a informação derivada de um exame clínico cuidadoso. No entanto é preciso salientar que este exame precisa ser minucioso e constar de todos os detalhes que permitam conclusões fisiopatológicas e etiológicas conforme até aqui descrito.
               Um exame clínico superficial, sem buscar os dados relevantes na procura dos mecanismos fisiopatológicos e etiológicos, é realmente desnecessário e pode ser substituído por teste diagnóstico, mas o papel do exame físico adequado é cada vez mais significativo, mesmo na medicina dos nossos dias. Ele deve por isso ser praticado mais, e não menos, pelos médicos de hoje. Uma limitação importante do exame físico é a falta de conhecimento sobre a especificidade, a sensibilidade e o valor preditivo dos sinais e sintomas. Na realidade, isto diminui um pouco o seu valor diagnóstico, mas esta mesma falta de especificidade, sensibilidade e valor preditivo existe para a grande maioria dos sinais encontrados nos exames complementares, e o exame clínico serve, em conjunto com eles, para avaliar devidamente o diagnóstico e quantificar a severidade das lesões encontradas. Nos anos futuros, novos estudos, até aqui efetuados de maneira tímida e incompleta, precisam ser realizados para se avaliar sensibilidade, especificidade e valor preditivo de cada um dos sinais ao exame físico. Assim, ele se tornará cada vez mais específico e cada vez mais a pedra fundamental do diagnóstico clínico.
               Nos últimos anos, avanços tecnológicos de suma importância têm surgido, de sorte a fazer parecer menos importante o exame clínico à beira do leito. No cenário de todas estas alterações é confortador lembrar que muitas das bases da cardiologia continuam as mesmas. Embora muitos paradigmas estejam mudando, alguns permanecem fundamentos e quase imutáveis, e o mais importante deles é o diagnóstico à beira do leito. Podemos dizer com toda a certeza que o exame clínico do paciente à beira do leito suportou e venceu o que provavelmente é o teste mais severo na ciência: o teste do tempo. A despeito da confiabilidade dos achados auscultatórios no diagnóstico cardiológico e no prognóstico, e a despeito da grande relação custo/efetividade da escuta cardíaca, uma situação desapontadora surgiu nos últimos anos: a escuta cardíaca é às mais das vezes realizada mal, e a confiabilidade dos relatórios dos achados é extremamente questionável. É uma constatação lamentável que, no presente momento, muitos grandes médicos e até mesmo muitos grandes especialistas em cardiologia não estejam aplicando toda informação que pode ser obtida com uma simples escuta cardíaca. Nesta era de aparelhos complicados é essencial para o diagnóstico e o tratamento um bom exame clínico do paciente, e, como os custos médicos estão aumentando, é cada vez mais necessário e imperativo obter todas as informações e ajuda de métodos tão baratos e confiáveis como o estetoscópio (Figura).
               É lamentável que, nos dias presentes, a falência do exame à beira do leito não seja resultado da falta de progresso médico, mas sim de uma atrofia pelo desuso. O grande papel do exame clínico é orientar que métodos de exames complementares devam ser solicitados para esclarecer dúvidas diagnósticas. Muito se fala, e até com desprezo, no uso de baixa tecnologia, que inclui a história clínica e o exame físico, em oposição à alta tecnologia, que inclui os exames complementares. Quanto menos se conversa com o doente, quanto menos se o examina com proficiência, mais se utilizarão os exames de alta tecnologia, por vezes incluindo uma percentagem extremamente alta de exames desnecessários.
               De resto, o termo baixa tecnologia é absolutamente impróprio para qualificar as habilidades de história e exame físico, uma vez que eles usam o mais sofisticado dos instrumentos, que é o cérebro humano, associado ao mais sensível e mais admirável dos instrumentos, que é o coração. Embora esta necessidade de retorno à qualidade básica (hands on) como conduta médica esteja se tornando cada vez mais evidente, lamentavelmente os médicos em treinamento atualmente não aprendem os requisitos de habilidades diagnósticas para assegurar que um exame clínico adequado e frutífero possa ser feito. Nos Estados Unidos, inquéritos nacionais têm chamado atenção para deficiências significativas que existem nos programas de treinamento relacionados ao exame clínico cardiológico. Muitas vezes os estudantes ou jovens médicos dão mais valor e acreditam apenas em novos testes laboratoriais dispendiosos, e não nos finos detalhes da história e na realização de um exame físico cardiovascular competente.
               Além disso, a avaliação clínica do paciente cardiopata, especialmente nos departamentos de emergência e nas unidades de terapia intensiva, evoluiu para um estado de apenas inspeção do paciente e realização de bateria de testes extremamente dispendiosos e intervenções agudas. O resultado é que os médicos nestes departamentos raramente usam o estetoscópio (se é que alguma vez o fazem) e, se o fazem, é de uma maneira muito limitada, como, por exemplo, para confirmar a localização de um tubo endotraqueal, ou para avaliar os sons respiratórios, ou mesmo para declarar um paciente vivo ou morto.
               Um estudo recente demonstrou, entre clínicos e médicos de família, que apenas 20% dos sons mais comuns e sopros que poderiam ser diagnosticados com o estetoscópio são reconhecidos pelos mesmos. Este fato é particularmente perturbador, especialmente no cenário dos cuidados gerenciados, que atribuem cada vez mais a responsabilidade do diagnóstico e do tratamento das doenças cardíacas aos clínicos gerais, que funcionam também como gatekeepers para a realização de exames especializados ou exames complementares.
               Além disso, apenas um quarto dos programas americanos de medicina interna e um terço dos programas cardiológicos oferecem um ensino estruturado da escuta cardíaca; triste porém verdadeiro. No passado, e felizmente sendo revigorado nos dias de hoje, o estetoscópio era considerado uma identificação honrada pelo tempo da profissão médica, e a virtuosidade estetoscópica, uma condição sine qua non do clínico consumado; mas os tempos e as modas mudam.
               A despeito da economia que ele traz, existe uma crescente concepção errônea, especialmente entre os jovens clínicos hoje em dia, de que o exame clínico cardiovascular é antiquado, alguma coisa do passado, e que a escuta cardíaca é uma perda de tempo. Muitos destes médicos ou estudantes questionam por que eles devem ouvir o paciente quando existe um ecocardiograma disponível facilmente. Contudo, em adição à sua importância diagnóstica, a avaliação clínica ajuda a conservar uma outra commodity escassa na prática contemporânea da medicina, qual seja, o reconhecimento da dimensão interpessoal da arte de curar e o valor terapêutico do contato físico entre o paciente e o seu médico. Nesta era de alta tecnologia e cuidados gerenciados, a prática da medicina tornouse muito impessoal, mais instrumental e desumanizante na sua maneira de ser exercida. A sensação de cuidado e conforto que o paciente recebe com o exame clínico e com a atenção do médico para com ele acelera o estabelecimento de um relacionamento e uma confiança que são muito importantes na privilegiada e sagrada relação médico/ paciente. Poderíamos dizer (Perry, 1996) que ninguém se importa com o quanto você conhece até que ele conheça o quanto você cuida dele. No nosso país, com as suas grandes discrepâncias regionais, com uma pobreza lastimável e com os parcos recursos disponíveis em grandes regiões do interior e através do Sistema Único de Saúde, torna-se o diagnóstico clínico ainda mais imperativo e importante. Na realidade, também no mundo de hoje os pacientes estão demandando muito mais cuidados pessoais, embora os médicos continuem a exibir uma fascinação pelos procedimentos diagnósticos high tech, mais glamourosos, que cursam paralelamente com sua disponibilidade generalizada e freqüentemente com mais gratificantes aspectos econômicos; tudo isso tem sido responsável pelo treinamento de uma geração de médicos jovens que não mais sabem examinar adequadamente. Fica muito evidente que uma das grandes necessidades da educação médica hoje em dia é reenfatizar o ensino das habilidades diagnósticas clínicas como um método fundamental de avaliação cardiovascular. Uma das dificuldades deste procedimento é a necessidade de persistência e treinamento continuado dos métodos de exame físico. À medida que nós adentramos no século XXI, não existe dúvida de que a prática da cardiologia continuará a se desenvolver e mudar com o tempo.
               Dentro deste mar de mudanças, contudo, há uma coisa que certamente permanecerá constante: os pacientes continuarão a apresentar os mesmos sintomas e os mesmos sinais clínicos pelas mesmas razões (Richardson e Moody, 2000). O Quadro a seguir mostra as possibilidades do exame clínico cardiovascular.
               Em que pesem o retorno do clínico às habilidades do exame físico e a quase exigência dos pacientes para tal, o assunto ainda é controverso, como exemplificado em dois comentários ao artigo Bedside Cardiac Examination: Constancy in a Sea of Change por Richardson e Moody. O dr. Pravin M. Shah afirmou que “na sua revisão sobre a ciência e arte da escuta, os drs. Richardson e Moody fazem uma apaixonada defesa para uma maior ênfase nas habilidades e sutilezas da escuta à beira do leito na educação de estudantes e médicos residentes”.
               Quando realizada com precisão magistral, a escuta cardíaca oferece uma experiência impressionante, que satisfaz o ego do especialista, especialmente quando ela é realizada em frente a neófitos, tais como médicos e estudantes de medicina. Contudo várias realidades merecem ser também enfatizadas: em primeiro lugar, a escuta cardíaca é subjetiva e, portanto, difícil de ensinar apesar das novas tecnologias. Uma vez aprendida, ela deve ser praticada muito freqüentemente para poder ser realizada com propriedade. Segundo, em comparação com a acurácia da ecocardiografia diagnóstica, por exemplo, a acurácia da escuta cardíaca não é suficiente. Eu estou ainda para cruzar com um cardiologista que não tenha solicitado um ecocardiograma para um paciente com sopro cardíaco antes mesmo de realizar uma escuta cuidadosa à beira do leito. Os médicos residentes que observam esta prática não podem ser acusados por “cortar o homem no meio” e simplesmente requisitar um ecocardiograma.
               O currículo das escolas médicas se torna mais amplo com o tempo. A maior parte dos estudantes de medicina não vai ser cardiologista e, portanto, por que ensinar as nuances da escuta cardíaca? Seria melhor enfatizar simples e poucas habilidades, tais como: existe um sopro cardíaco? É este sopro sistólico ou diastólico? Tem ele as características de um sopro inocente ou sopro de fluxo? Pode-se razoavelmente sugerir não ultrapassar estes limites. Um residente de medicina ocupado pode ser ensinado a reconhecer uma terceira e uma quarta bulha, mas a escuta detalhada à beira do leito com manobras diversas deve constituir uma parte importante do currículo somente para o treinando em cardiologia.
               Esta minha opinião é baseada em uma experiência pessoal dedicada à escuta cardíaca e ao conhecimento das forças e das limitações da ecocardiografia. Os drs. Richardson e Moody devem ser cumprimentados pela sua revisão do exame à beira do leito, nesta era moderna de alta tecnologia em cardiologia, e por manter viva a paixão. A seguir o dr. Roberts afirma: “O dr. Shah cruzou agora com um cardiologista, o editor deste jornal, que freqüentemente não pede um ecocardiograma para pacientes com um sopro cardíaco. Quando eu acredito que este sopro seja inocente, não pedir um ecocardiograma economiza para o paciente ou o sistema de saúde cerca de R$1.500,00. Por outro lado, o diagnóstico de regurgitação fisiológica mitral ou tricúspide pelos ecocardiografistas freqüentemente leva confusão ao médico solicitante e ao paciente que não tem nenhuma doença cardíaca ou sintomas de doenças cardíacas. O eco certamente também não é um standard perfeito”.
               Respondendo à parte de ensino, técnicas modernas podem ser aplicadas com perfeição ao ensino da auscultação por um CD-ROM de escuta cardíaca, no qual os eventos da escuta são marcados e podem ser identificados. Na realidade, sem estes elementos é impossível dizer-se qual é a terceira bulha, ou qual o sopro mesodiastólico de baixa freqüência. Com estas técnicas, a escuta cardíaca deixa de ser ensino subjetivo e passa a sê-lo em bases científicas. O exame físico pode também ser demonstrado em outro CD sobre o exame físico, onde são mostrados desde a atitude do médico até os dados mais aparentemente sutis perceptíveis: a arte de examinar... com prazer!