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    Em 1955 Jerome Conn(1) descreveu o caso de uma paciente de 34 anos que apresentava quadro clínico de hipertensão severa e hipopotassemia, revertido inteiramente após a remoção cirúrgica de um adenoma da supra-renal direita que secretava aldosterona. A nova síndrome clínica – síndrome de Conn ou hiperaldosteronismo primário (HAP) – caracterizava-se por aumento da excreção urinária de potássio, taxas elevadas de secreção de aldosterona e diminuição da atividade plasmática de renina, além de hipopotassemia e hipertensão arterial. Descrições subseqüentes de casos de HAP mostraram que não só adenomas solitários, mas também a hiperplasia bilateral das supra-renais, causavam as mesmas alterações clínicas e laboratoriais. Outros subtipos de HAP, como formas familiares, hiperplasia adrenal primária e carcinoma adrenocortical, foram publicados entre a década de 1970 e o início dos anos 1990(2-4). Em que pese o melhor conhecimento da síndrome de Conn e suas causas, até 1990 a prevalência de HAP na população de hipertensos ficava entre 0,05% e 2%(5, 6). Era então considerada causa incomum de hipertensão arterial.

              Nos últimos anos, vários grupos independentes de investigadores comprovaram que a doença não só era muito mais freqüente, como ocorria em hipertensos normopotassêmicos( 7, 9). Contribuem para este cenário os critérios de rastreamento mais eficientes e o desenvolvimento de métodos ancorados nos mais recentes avanços da bioquímica, da genética e da biologia molecular. Novas técnicas de imagem, como a tomografia computadorizada, também tiveram um papel importante.
              Atualmente admite-se que uma estratégia de diagnóstico corretamente aplicada à população de hipertensos poderá identificar pelo menos um entre dez hipertensos atendidos em clínicas de hipertensão como portadores de HAP(10).
              A mesma proporção pode se repetir em hipertensos que procuram serviços de atenção médica primária(11). Embora não haja unanimidade, entre os grupos que estudam HAP, quanto à maior prevalência da síndrome, não se pode negar que o tema tem grande importância, principalmente se levarmos em conta que um número razoável de pacientes não está se beneficiando de tratamentos mais específicos e até mesmo curativo de sua hipertensão arterial.

    Causas de hiperaldosteronismo
    primário

             Adenomas secretores de aldosterona e hiperplasia adrenal bilateral ou hiperaldosteronismo idiopático são as causas mais freqüentes de HAP(7). Entre os adenomas secretores existe uma variante, o adenoma secretor responsivo à angiotensina, em que a secreção de aldosterona não é autônoma, respondendo ao ortostatismo e à angiotensina(12). Outra variante é a hiperplasia adrenal unilateral ou hiperplasia adrenal primária, que tem características bioquímicas idênticas às de adenomas secretores, apresenta níveis urinários elevados, de 18-OH-cortisol e 18-oxocortisol, podendo ser controlada pela adrenalectomia unilateral(13). A ocorrência familiar de HAP é rara, menos de 3% dos casos de HAP, existindo um subtipo herdado por transmissão autossômica dominante, o FH-I, que se associa a um gene híbrido. O FH-I apresenta-se clinicamente com hipertensão severa e resistente aos agentes anti-hipertensivos usuais; os pacientes são habitualmente normopotassêmicos e o quadro clínico pode ser revertido pela administração de dexametasona(14). O outro tipo familiar de HAP, o FH-II, não responde à supressão com glicocorticóide, não se relaciona à presença de mutação genética e se manifesta por características clínicas e bioquímicas indistinguíveis dos adenomas solitários ou da hiperplasia adrenal bilateral(14). Os carcinomas adrenocorticais são muito raros e acabam por ser descobertos como massas tumorais funcionantes, geralmente volumosas, com mais de 6cm de diâmetro.

    Diagnóstico de hiperaldosteronismo
    primário (ver Figura 1)

    Testes de screening
    Níveis séricos de potássio

             Embora a hipopotassemia esteja presente em muitos pacientes com HAP, é um indicador pouco sensível e pouco específico da doença. Por exemplo, a administração de dieta hipossódica prolongada interfere nos mecanismos de perda de potássio pelo rim, diminuindo sua excreção urinária, o que atenua a hipopotassemia. Por outro lado, algumas séries de casos têm mostrado que apenas 20% a 30% dos pacientes com HAP são portadores de hipopotassemia (14-15).

    Atividade plasmática de renina (APR)

             Por conta da expansão do volume extracelular, a APR está suprimida em quase todos os pacientes com HAP (< 1ng/ml/h), e não aumenta apropriadamente (> 2ng/ml/h) após 120 minutos em posição ereta, restrição de sódio ou administração de furosemida(16). O teste é um indicador mais sensível que a hipopotassemia ou os níveis elevados de aldosterona no plasma ou na urina. Contudo tem pouca especificidade, pois a APR diminui com a idade. Além disso, pacientes que apresentam níveis baixos de APR e aldosterona normal têm sido rotulados como hipertensos essenciais com renina baixa(17), embora a maioria dos mesmos não tenha sido cuidadosamente estudada para se excluir HAP normopotassêmico.

    Relação aldosterona plasmática/atividade
    plasmática de renina (AP/APR)

             A relação AP/APR vem sendo considerada um dos testes de screening mais confiáveis para o possível diagnóstico de HAP, mostrando altas sensibilidade e especificidade(4). Uma relação (quando a APR for expressa em ng/ml/h e a AP, em ng/dl) maior que 25 é sugestiva, e quando igual ou maior que 50, virtualmente diagnostica HAP. Numerosos investigadores, de várias partes do mundo - Lim (Reino Unido)(10), Gordon (Austrália)(7), Young (Estados Unidos)(16) e Loh (Cingapura)(18) -, e que vêm publicando as maiores séries de casos de HAP, mostram que a relação AP/APR

    aumentou em mais de dez vezes a freqüência de detecção da doença, não só em hipertensos hipopotassêmicos, mas também naqueles com hipertensão resistente e normopotassêmicos (Tabela). Para um destes autores, a relação AP/APR teve sensibilidade de 93% quando comparada ao teste de supressão com fludrocortisona ou à presença de HAP comprovado cirurgicamente(10). Por outro lado, em estudos prospectivos envolvendo pacientes com AP/APR elevada, o tratamento com espirolactona diminuiu significativamente a pressão arterial e o número de medicamentos necessários para controlar a hipertensão(19).
              Embora os valores da relação AP/APR, a partir dos quais o diagnóstico de HAP passa a ser sugestivo, não sejam os mesmos nas várias séries de casos publicados, já que foram diferentes as condições locais e as características dos grupos estudados(20, 21), os seguintes pontos devem ser observados para o melhor rendimento do teste: 1) drogas antihipertensivas como inibidores de ECA, betabloqueadores e clonidina deverão ser suspensas duas a quatro semanas antes da obtenção das amostras de sangue; quanto à espirolactona, este prazo aumenta para seis a oito semanas. Quando for necessário, controlar a hipertensão com bloqueadores 1 pós-sinápticos, diuréticos tiazídicos e bloqueadores de canal de cálcio; 2) os pacientes precisam estar repletados de potássio, já que a hipopotassemia reduz os níveis de aldosterona; 3) as amostras de sangue deverão ser obtidas no meio da manhã e duas horas após, em posição ereta devido à variação circadiana e aos efeitos da postura sobre os níveis de AP e APR; 4) atentar se a AP está expressa em unidades internacionais (pmol/l) e se o laboratório utiliza a renina plasmática ativa ao invés da APR em ng/ml/h.
              Neste caso, a relação AP/renina plasmática ativa estará acima de 140 no HAP e abaixo de 100 em hipertensos essenciais. Entre 100 e 140, recomenda-se a repetição do teste(5).

    Teste do captopril

             Nos pacientes com produção autônoma de aldosterona, a administração de captopril tem pouco ou nenhum efeito sobre as concentrações de aldosterona e níveis de APR, podendo, assim, diferenciar casos de HAP dos pacientes hipertensos essenciais. Em hipertensos essenciais, com sistema renina-angiotensina normal, o captopril diminui a angiotensina II e a aldosterona, embora níveis elevados de renina estejam presentes devido à inibição da angiotensina. O protocolo é muito simples e consiste na mensuração dos níveis plasmáticos de aldosterona antes e 2 horas após a administração por via oral de 25mg de captopril. Recomenda-se que os pacientes permaneçam em jejum por 12h, que o sangue seja coletado na posição sentada e que anti-hipertensivos como espirolactona, bloqueadores betadrenérgicos e clonidina sejam suspensos(5). O teste tem correlação altamente significativa com os valores obtidos após sobrecarga salina(22), é bem tolerado, a pressão arterial permanece estável durante o estudo e parece não ser afetado pelas variações individuais da ingesta de sódio. A redução em mais de 20% dos níveis de aldosterona pós-captopril - usualmente menos que 410pmol/l (< 15ng/dl) - é considerada resposta normal. Este teste tem sensibilidade excelente, entre 90% e 100%, mas sua especificidade é de 50% a 80%(4).

    Testes confirmatórios

             A relação AP/APR não estabelece o diagnóstico de HAP.
              A síndrome precisa ser confirmada pela demonstração de que a secreção de aldosterona é autônoma. Entre os protocolos freqüentemente utilizados, e sobre os quais se tem maior experiência, podemos citar os que se seguem.

    Teste da sobrecarga salina

             O teste de sobrecarga salina consiste em se administrar por via oral, durante três dias, aproximadamente 10g de cloreto de sódio ou, como alternativa, dois litros de soro fisiológico, durante quatro horas, visando a suprimir a produção de aldosterona que ocorre com a expansão do volume extravascular. Se a excreção urinária de 24h de aldosterona, após sobrecarga oral de sódio, for superior a 28mmol/ dia a 39mmol/dia (10mg/dia a 14mg/dia), na presença de excreção urinária de sódio maior de 250mmol/dia, o diagnóstico de HAP está praticamente confirmado, com excelentes sensibilidade e especificidade (96% e 93%, respectivamente)( 8). Se utilizarmos os níveis fisiológicos de AP após expansão do volume intravascular com soro, valores acima de 280pmol/d (> 10ng/dl) também são fortemente consistentes com o diagnóstico de HAP(23).
              Alguns autores combinam a sobrecarga salina por via oral com a administração de acetato fludrocortisona, 0,1mg a cada seis horas(4). Níveis de AP superiores a 240pmol/l (8,5ng/dl) ou de aldosterona urinária maiores que 12mg/ 24h confirmam que a secreção de aldosterona não foi suprimida, o que praticamente confirma o diagnóstico da HAP. Pode-se usar a desoxicorticosterona (Doca) em substituição à fludrocortisona, administrando-se 10mg do mineralocorticóide de 12h/12h, por via intramuscular, durante três dias consecutivos, e medindo-se a excreção urinária de aldosterona 24 horas antes do início e no terceiro dia após o uso de Doca. Em hipertensos essenciais pode haver diminuição de pelo menos 50% na aldosteronúria, enquanto nos pacientes com HAP a queda é inferior a 10%. Atentar para o fato de que pacientes com hiperplasia adrenal bilateral comportam- se, em relação à supressão com Doca ou fludrocortisona, como hipertensos essenciais. Assim, a não-supressão da secreção de aldosterona, além de caracterizar o HAP, permite o diagnóstico diferencial entre adenoma secretor de aldosterona (ASA) e hiperplasia adrenal bilateral (HAI). É útil também a relação da AP (em ng/dl) e as concentrações de cortisol no plasma (em mg/dl), que costuma ser inferior a 3 nos pacientes com HAI. Em contrapartida, em portadores de ASA, o valor é geralmente superior a 3, mostrando a autonomia do adenoma.


              Deterioração da função diastólica ventricular esquerda e aumento do intervalo QT têm sido descritos com o protocolo de sobrecarga salina associado à fludrocortisona, principalmente se o paciente tiver hipertensão arterial ou insuficiência cardíaca subclínica(24).

    Teste da postura

             Outro protocolo que permite distinguir os ASA da HAI é a resposta da AP e do cortisol à mudança postural(25). Em indivíduos normais e hipertensos essenciais, as concentrações plasmáticas de aldosterona se elevam pelo menos 50% duas a quatro horas após deambulação ou adoção da posição ereta. A acurácia do teste aumenta quando se medem simultaneamente os níveis de cortisol e AP. Em pacientes com ASA, ambas as variáveis não se elevam com a mudança postural, podendo mostrar até redução quando em ortostatismo. Em contrapartida, os portadores de HAI, quando assumem a postura ereta, respondem à mesma com aumento de dois a três níveis da AP e da APR em relação aos níveis basais(26). O valor preditivo do teste da postura em distinguir os ASA e casos de HAI é de 90%, embora sua especificidade seja menor devido aos subtipos de ASA e de HAI. O declínio postural da AP também acontece nos subtipos (FH-I), que são controlados pela administração de dexametasona.
              A dosagem na urina de 24h dos compostos cortisólicos híbridos 18-oxigenados-18-oxocortisol e 18-OH-cortisol pode diagnosticar a variante FH-I e diferenciar os ASA dos casos de HAI. Ambos são importantes marcadores de FHI, podendo apresentar níveis dez vezes superiores aos valores de referência. Estes níveis estão discretamente aumentados no ASA e normais em pacientes com HAI(27).
              Por outro lado, os níveis sangüíneos de 18- hidroxicorticosterona (18-(OH)-B), que é produto intermediário da via de síntese da aldosterona, estão usualmente acima de 2.800nmol/ml (100mg/dl) em indivíduos com ASA, diferenciando-os, assim, daqueles com HAI que mostram níveis significativamente menores(28) (Figura).

    Diagnóstico radiológico do hiperaldosteronismo primário

             A tomografia computadorizada (TC) é o método radiológico mais utilizado para a avaliação anatômica das adrenais em pacientes suspeitos de HAP. Os ASA, quando têm entre 1cm e 3cm de diâmetro, podem ser detectados pela TC, principalmente se o exame for feito utilizando-se cortes de 3mm.
              Tendo-se em vista os resultados de várias séries de casos de ASA publicados recentemente(8, 9), chega-se à conclusão de que a TC não pode ser considerada padrão-ouro de diagnóstico. Por exemplo, a TC detectou apenas 47% dos ASA comprovados cirurgicamente em uma das maiores séries de casos de HAP, não diagnosticando um quarto dos tumores medindo menos de 1cm de diâmetro(14). Isto é significativo quando se sabe que um entre cinco adenomas de suprarenal tem menos de 1cm de diâmetro. Nesta mesma série, a TC mostrou-se claramente equivocada, diagnosticando massas nas adrenais contralaterais, mas não nas ipsilaterais.
              Em outra série menor, estudada por McAlister e Lewanczuk(29), dos 18 pacientes com HAP, 13 tiveram o diagnóstico de ASA comprovado cirurgicamente e os demais mostraram HAI não-funcionante. É importante ressaltar que 2% a 10% dos tumores diagnosticados pela TC não são produtores de aldosterona (14). Mas em pacientes com HAI as adrenais poderão parecer normais ou bilateralmente aumentadas, com ou sem micronódulos(30).
              Os dados mencionados acima, outras evidências da prática clínica e estudos de séries de casos têm apontado que a coleta de sangue por cateterismo seletivo de uma das veias adrenais é o único método confiável para diferenciar o aumento unilateral de produção de aldosterona, passível portanto de correção cirúrgica, de casos de HAI. Deve-se, também, considerar que os adenomas responsivos à angiotensina II são bioquimicamente indistintos dos casos de HAI. Isto reforça, ainda mais, a importância do exame como método indispensável para este diagnóstico. O cortisol plasmático deve ser estimado simultaneamente, mas em alíquota de sangue coletada separadamente, para que se comprove a origem da amostra obtida. O gradiente cortisol/veia adrenal e cortisol/veia cava inferior deve ser igual ou superior a 3 para que os resultados possam ser considerados confiáveis. Em mãos experientes, e quando o cateterismo da veia adrenal direita for feito com sucesso, o procedimento faz o diagnóstico em mais de 95% dos casos. Contudo a incidência de insucesso pode chegar a 25%(4).

    Mutações genéticas e
    hiperaldosteronismo primário

    Em 1992, Lifton et al.(31) descreveram um teste utilizando metodologia Southern blot para reconhecer no sangue periférico o DNA de um gene híbrido que firmaria o diagnóstico de HAP familiar, subtipo FH-I. Três anos depois, Jonsson et al.(32) relataram um método mais rápido utilizando PCR, com os mesmos objetivos. Estes foram uns dos passos mais importantes para a caracterização de formas primárias e familiares de aldosteronismo, passíveis de serem controláveis pelo uso de dexametasona administrada em doses orais de 0,5mg a 2mg por dia(33). Estes casos, até então, eram diagnosticados pela demonstração de supressão da secreção de aldosterona pelo teste da dexametasona sujeito a falsos positivos e falsos negativos(9, 34). A partir daí inúmeros casos de HAP foram reconhecidos em famílias de várias partes do mundo(9, 35, 36), estabelecendo-se que o subtipo da doença é causado pela herança de um gene mutante ou quimérico formado pela combinação do CYP11B1, gene que codifica a enzima 11ß-hidroxilase (promove a 11ßhidroxilação da DOC, para formar corticosterona na zona glomerular e zona fasciculata, e do 11-deoxicortisol, para formar cortisol na zona fasciculata) e o gene CYP11B2, que codifica a aldosterona sintase (participa da conversão na zona glomerulosa da cortiscosterona em aldosterona) e que, nos casos de HF-I, sintetiza 18-OH-cortisol e 18-oxocortisol. O gene mutante resulta na expressão ectópica de aldosterona sintase, que passa a ser controlada pelo ACTH, e não pela angiotensina II (31, 37, 38) Embora raros, menos de 3% dos pacientes com HAP, os portadores de FH-I podem ser reconhecidos numa fase bastante precoce, pré-clínica, de HAP quando nem hipertensão arterial nem hipocalemia estão presentes. Como já foi mencionado, o outro subtipo de HAP familiar, FH-II, não se associa a mutação de gene híbrido, tem características clínicas, bioquímicas e morfológicas indistinguíveis de casos de ASA ou HAI e parecem ser mais freqüentes que o subtipo FH-I(34).